Desde que me dei conta que viver entre concreto e dois milhões de habitantes não era tão divertido durante a pandemia, coloquei na mochila cinco mudas de roupa, alguns livros, meu material de trabalho e a garrafa de gim que estava há meses fechada na estante e me mudei temporariamente para o sítio da minha família. Isso foi por volta de abril e, desde então, tenho procurado formas de atravessar esse período longe do cinza.
A decisão surpreendeu muita gente, já que a minha personalidade tem raízes profundamente urbanas e eu não havia passado mais que a duração de um feriado no meio do mato desde as férias do Ensino Fundamental, quando minha mãe me colocava no carro sem direito a argumentação. “Da primeira vez que você quiser um iFood e não conseguir você volta correndo”, disse uma amiga.
Mas, contra todas as previsões, aqui estou eu, nove meses depois, cercada de verde e espaço, agora não mais no sítio, onde passei 60 dias e fui embora porque ficar sem supermercado próximo começou se mostrar inconveniente, mas numa casinha com vista para a vegetação abundante da Chapada Diamantina, ouvindo nesse momento os gritos de algum ser que pode ser qualquer coisa entre um tipo estranho de macaco e uma galinha. Meu avô estaria orgulhoso.
Uma das grandes mudanças do século 21 foi fazer com que lugares fisicamente isolados não sejam tão isolados assim, pelo menos de forma simbólica. Ao contrário do que ocorria quando eu tinha 12 anos, há telefone, internet banda larga e TV a cabo em qualquer um desses lugares, até mesmo na cancela sem número da estrada de terra sem nome. É claro, é sempre um pequeno incômodo não poder simplesmente pegar o telefone e pedir um delivery sempre que eu quero comer algo diferente. Ou ter que planejar minuciosamente o supermercado porque não dá para apenas andar até a loja mais próxima, mas, ei, não passamos todos a viver mais ou menos assim na cidade grande também? Entre as adaptações que tivemos que passar por causa desse micróbio do caralho, essas me parecem as mais fáceis de lidar.
Embora minha rotina em geral permaneça basicamente a mesma, só que com mais ar puro, há um aspecto crucial que difere profundamente a minha experiência urbana: a fauna local. Para quem nunca teve que lidar com bicho nenhum a não ser gato, cachorro de apartamento e uma barata eventual, receber a visita inesperada de animais para os quais eu não tenho protocolo tem sido um aprendizado.
As pererecas do banheiro do sítio foram as primeiras a serem incorporadas na rotina. Se no início era um problema ter que tomar banho com seus grandes olhos redondos me observando, logo nos acostumamos com a presença uma da outra e eu nem me importei quando, por mais de uma vez, ela pulou sobre meu pé a caminho da parede mais próxima. Batizei-a de Julieta, sem me preocupar se era a mesma perereca que aparecia ali todas as noites.
Julieta desapareceu no mesmo dia em que um sapo enorme resolveu caçar no banheiro.
Compreensível, afinal eu também fiquei sem usar o cômodo durante o tempo em que ele permaneceu ali. Ao contrário do que aconteceu com as pererecas, eu ainda não consegui agir naturalmente na presença de sapos. Assim, chegamos ao acordo tácito de que eu não interfiro no curso natural da vida deles, e eles não interferem na minha.
Um dos aspectos da vida selvagem que sempre me fascina é a capacidade dos bichos de se camuflarem. Um dia, um segundo sapo quase se confundiu com o chão de ardósia verde da sala de estar. Com uma das lâmpadas queimadas e a minha visibilidade comprometida, passamos o que talvez tenha sido horas na presença um do outro sem que eu me desse conta da sua existência imóvel ao meu lado, e foi realmente uma benção – para ambos – que eu não tenha passado por cima dele no caminho para a cozinha. A mesma sorte não teve a lagartixa que se escondeu debaixo do tapete do banheiro.
Mas a relação mais intensa e duradoura que eu desenvolvi naqueles dias foi com o morcego que aparecia todas as tardes, mal o sol caia atrás da serra. Ele entrava pela janela do meu quarto, passeava por todos os cômodos e saía logo depois pela janela da cozinha. Sempre o mesmo trajeto, como um relógio natural que me lembrava que era hora de fechar a casa para evitar que insetos e outros bichos da noite resolvessem me fazer companhia. No início, temi que uma falha em seu radar acoplado o levasse a se emaranhar nos meus cabelos, mas logo percebi que ali a natureza funciona melhor que o GPS.
Aqui, em meio à Chapada, não tenho mais morcegos amigos, mas sigo recebendo visitas regulares de anfíbios. Sapo, aliás, é o que não falta, e eles têm a mania de ficar parados, feito estátua, na escada que leva para a minha casa, principalmente quando chove. Essa semana teve dia que não choveu e eles não vieram, mas veio uma esperança e pousou sobre a porta. Foi na mesma data em que minha irmã, profissional de saúde, tomou a primeira dose da vacina. Achei simbólico.
“O morcego entrava por essa janela e saía pela cozinha”
“Registro do isolamento no sítio”
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