Pouco antes que eu embarcasse para o Irã, uma blogueira italiana foi presa em decorrência dos protestos.
Alessia Piperno comemorava seu aniversário de 30 anos quando a polícia invadiu sua casa em Tehran e deteve o grupo de amigos que participava da festa sob a alegação de que eles conspiravam contra o regime. Embora o motivo para a ação da polícia nunca tenha ficado claro, dois dias antes do ocorrido, ela havia publicado um texto no Instagram no qual se posicionava à favor dos protestos.
Desde agosto de 2022, pouco antes da morte de Mahsa Amini, manifestar-se publicamente contra o uso do véu é crime no Irã. O que Alessia fez estava, portanto, previsto no código penal do país, e uma coisa que todo viajante deve tomar cuidado é em respeitar as leis do lugar visitado, concorde você com elas ou não. Mas sua prisão também faz parte de uma antiga estratégia diplomática da República Islâmica: o sequestro arbitrário de estrangeiros para usá-los como reféns em negociações com governos, especialmente os cidadãos de potências ocidentais.
Antes de se tornar detenta em Evin, prisão de Teheran para onde são enviados os presos políticos onde ela passou amargos 45 dias, Alessia viajava o mundo trabalhando de forma remota, escrevia sobre isso na internet, tinha preferência por destinos fora do mainstream e amava manifestações culturais e mercados coloridos.
Embora eu estivesse determinada a não cometer o mesmo ou outros erros que pudessem me meter em alguma encrenca, com tantas semelhanças era impossível não pensar que poderia ter sido eu. Se em algum momento nossos caminhos tivessem trombado por aí, tenho certeza de que poderíamos ser amigas.
Por precaução ou paranoia, assim que cheguei ao Irã, coloquei meu perfil no Instagram no privado e evitei o assunto quando me perguntavam no direct.
Uma das belezas de viajar: caminhar sem saber onde pisa.
Quem se apaixona pela descoberta não abre mão dessa sensação de estar completamente perdido. Viajamos para nos sentir estrangeiros. Isso, porém, não vem desacompanhado de riscos.
Eu tinha consciência de que visitava o país num momento conturbado e precisei arcar com as consequências da decisão de manter meus planos de viagem.
Quando embarquei para Sanandaj, eu não sabia que estava caminhando para dentro de um campo de guerra. “Não saiam do hotel depois de escurecer. A coisa fica diferente depois que o sol se põe”, me disse o garoto do restaurante logo no meu primeiro dia na cidade.
Bastou uma volta nos entornos do mercado cercado pelo exército, poucas horas após o almoço, para me convencer a ir embora.
Um dos privilégios de ser estrangeiro é poder partir.
Foi só em Kashan que eu perdi o medo de ser presa.
Não sei se foi a sensação de isolamento trazida pelo deserto de Maranjab ou a tranquilidade estática de uma cidade-oásis, mas o atendente do hotel me disse para eu não me preocupar, que ali eu estava a salvo, e eu acreditei.
Passei minhas tardes escorada em almofadas e tapetes na companhia de um chá, admirando o contraste entre as casas cor de areia e o verde dos jardins persas, construídos para representar o paraíso. Eles são irrigados por filetes de água retirada das nascentes da região, que percorrem a cidade em canais decorados com azulejos e se juntam para formar pequenas piscinas.
Lar de um importante centro de formação de clérigos, a Kasham é um reduto conservador. Ao contrário do resto do país, o chador – aquela túnica islâmica que cobre as mulheres da cabeça aos pés – passa longe de ser uma exceção, e a há mais turbantes por ali que em Tehran.
Foi em Kashan, aliás, que eu vi meu primeiro turbante preto, um sinal de que o homem embaixo dele é de alguma maneira descendente do profeta. “Ou ele acha que é“, me disse um guia, sem conter uma risadinha irônica. “Para mim isso não passa patifaria”.
Ao contrário do que eu esperava, estar em um local super religioso fez com que eu me sentisse mais segura, e não menos. Onde não há protesto, não há milícia islâmica, e eu finalmente pude relaxar longe das armas, coturnos e delírios fundamentalistas.
Na primeira semana no Irã, eu vivia em estado de alerta. Estava sempre pronta para mudar de direção e ir embora ao menor sinal de gente carregando cartazes de protesto. Caminhava pelas ruas morrendo de medo de ser parada pela Polícia da Moral. Tentava falar português bem alto sempre que uma senhorinha de preto passava ao meu lado, como quem grita “olha, eu não sou daqui, me desculpe se não sei colocar direito esse fucking pano na cabeça”.
Não sei qual foi o momento em que a chave virou, mas quando me perguntavam como eu me sentia sendo mulher naquelas bandas, eu me lembrava que fui mais assediada na Colômbia e a tranquilidade com que eu transitava nas ruas ali não condiziam com o péssimo estereótipo que cultivamos do país.
Passado alguns dias, eu nem me importava mais se o véu escorregava para o meu pescoço e parava por ali por alguns minutos. Ninguém parecia se importar com isso. Nem mesmo em Kashan.
Sempre que reparava nos meus cachos à mostra, Jeff soltava um risinho e dizia: “seu zíper está aberto”, e eu tateava o tecido para colocá-lo novamente no lugar. Como fazem as iranianas.
Para ler a primeira parte dessa história, clique aqui.
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