Só depois que a última senhora lhe pedia a benção e saia da igreja rumo às vielas estreitas de Santa Rita da Solidão, só depois que ele dobrava com cuidado o forro de cetim litúrgico da última missa do dia e somente após fechar as janelas atrás dele e se sentar sozinho no silêncio da sacristia, acompanhado de uma taça do vinho da comunhão, era que Padre Ramiro permitia-se sentir o peso dos anos sobre o joelho debilitado e o peso dos séculos sob o ouro da construção barroca. Havia sido assim há trinta anos, desde quando fora transferido para aquela pequena paróquia, a menor e a mais pobre em quilômetros e mais quilômetros de cerrado e um passado já há muito esquecido de ostentação possibilitada pela exploração predatória e escravista das riquezas minerais
Embora nunca tenha dito em voz alta, o padre sabia em seu íntimo que, se fosse por ele, teria preferido alguma igreja, ainda que pequena, em Diamantina ou São João Del Rey. Ou quem sabe, teria agarrado aquela oportunidade antiga que o fez sonhar com estudar em Roma. Por um tempo, chegou até mesmo a aprender um pouco de italiano por conta própria, mas nunca mais teve a oportunidade de praticar desde que chegara àquele fim de mundo. Tentava se consolar dizendo a si mesmo que aqueles desejos não passavam de vontades do ego e que havia um propósito divino para sua estadia naquele lugar.
Apesar do passado glorioso, Santa Rita da Solidão sequer constava na maioria dos mapas ou nos livros de história que contavam sobre o grande ciclo de exploração de diamantes da qual os casarios coloniais e aquela própria igreja foram testemunhas. Ninguém que assistia as missas tampouco se lembraria dos episódios de sangue que os números nos poucos registros existentes ocultavam, e com certeza jamais tinham notado o cheiro de morte que, tão logo o Padre ficava sozinho, começava a subir dos 178 túmulos construídos bem embaixo do assoalho de madeira de toda a nave principal.
Não, aquela história já havia sido quase que completamente apagada das memórias de vivos e mortos e certamente seria esquecida por completo não fosse ele. E era por isso, ele sabia, que estava ali. Alguém precisava se lembrar.
Por isso, assim como fizera todos os domingos dos últimos trinta anos, Padre Ramiro deu o último gole no vinho e esperou. Enquanto esperava, retirou da prateleira empoeirada um livro velho de capa de couro desgastado e mais uma vez leu sobre o massacre que precisava expurgar. Oitenta almas negras que conspiravam pela liberdade, encurralados dentro da Casa de Deus.
Quando os sinos da igreja bateram as três da manhã. Ele se levantou calmamente e atravessou a nave principal em direção à rua, cruzou o pátio e subiu a ladeira até o alto do morro, até a outra igreja. Mais simples, sem tanto ouro e com santos que levavam roupas humildes, a Igreja de Santa Rita dos Homens Negros já não recebia mais cultos oficiais.
O Padre tomou seu lugar detrás do púlpito, fez o sinal da cruz, abriu a bíblia que levara consigo, limpou a garganta e disse em voz alta para a capela vazia:
“Por ele não cessais de criar e santifi-
car estes bens e distribuí-los entre nós.
Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós,
Deus Pai todo-poderoso, na unidade do
Espírito Santo, toda a honra e toda a
glória, agora e para sempre.”
“Amém”, dezenas de vozes responderam em conjunto.
A ventania varreu os bancos da igreja e fechou porta e janelas com um estrondo. Uma matilha de cães uivava do lado de fora e Padre Ramiro escutou as patas rodearem a pequena igreja com pressa, assustados. E, então, a porta se abriu novamente, e risos de criança encheram o salão. Os pezinhos invisíveis corriam de um lado para o outro, enquanto brincavam. Mais uma vez, Padre Ramiro sentiu o rosto molhado sem, no entanto, perceber que ia chorar. Sob o murmúrio daquelas almas que se sentavam naquela igreja todas as noites, prosseguiu a missa.
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