Em algum momento dessa vida que parece outra vida completamente diferente, eu fui estagiária do Centro de Alfabetização e Letramento da UFMG. Era um trabalho legal, no qual eu tinha que escrever reportagens sobre educação em um jornal voltado para professores do Ensino Básico. Entre uma entrevista e outra, eu encontrava muito tempo livre para gastar em uma sala abarrotada de computadores amarelados.
Aquelas tardes solitárias passadas na Faculdade de Educação me trouxeram um hobby inusitado: perdi as contas de quantas horas passei olhando anúncios de motorhomes no Mercado Livre. Eu, que mal-mal havia chegado até o Espírito Santo, sonhava em pegar minha farta bolsa-estágio de trezentos reais e sair por aí, percorrendo estradas sem destino, dormindo cada dia em um lugar.
Era divertido imaginar a aventura num momento em que tudo na minha vida parecia tão corriqueiro e sem graça, e a fantasia se tornou quase uma obsessão. Eu não sabia dirigir e mal tinha o dinheiro do ônibus na carteira, muito menos os quatrocentos mil lulas pedido pelos donos, mas me imaginava vivendo aquela liberdade inocente e romantizada, sem obrigações ou compromisso, sem pressões, boletos e horários de trabalho.
(Acho que, naquela época, esse tipo de veículo não era fabricado no Brasil e por isso todos os anúncios eram de trailers importados. Não sei se isso mudou, mas é por isso que eram tão caros).
Anos mais tarde, já com um emprego de adulto, me deparei mais uma vez com o sonho de uma vida nômade. Mas o gatilho que me atirou nela foi nada romântico: do dia para a noite, descobri o significado da precariedade.
A mega-empresa-editorial para a qual eu prestei serviço como PJ por alguns meses (mas com responsabilidades de CLT, diga-se de passagem), resolveu fechar minha redação e colocar todo mundo na rua. Sem direito a fundo de garantia ou um segurinho-desemprego que fosse, decidi: se o mercado não me proporcionaria direitos trabalhistas, eu iria ao menos aproveitar a liberdade da ausência de vínculos.
Pleiteei alguns trabalhos freelancer e, uma vez estabilizada, fui trabalhar das mesas de cafés e bares de hostels espalhados pelas principais capitais na Europa. De lá para cá, vocês sabem: o 360meridianos acabou crescendo e se tornando meu trabalho autônomo e eu tive a oportunidade de tirar inúmeras fotos de blogueira em inúmeros destinos por aí.
Reconheço todos os privilégios que me permitiram esse estilo de vida e sou verdadeiramente contente por ter tido a oportunidade de adotá-lo (eu sonhava com ele lá atrás, se lembram?). Mas ao assistir ao filme Nomadland, vencedor do Oscar de 2021, terminei com uma agridoce sensação de reconhecimento.
O filme retrata a realidade dos mais de um milhão de pessoas que, após o colapso econômico de 2008, adotaram a vida nômade nos Estados Unidos. Apenas dois dos personagens são interpretados por atores: a protagonista Fern (Frances McDormand) e sua amiga Dolly (Melissa Smith). Todas as outras histórias que aparecem no filme são de pessoas reais, que falam sobre a experiência de viver sem endereço fixo a partir de suas vivências.
Veja o livro que inspirou o filme aqui
É verdade que os nômades retratados ali têm um perfil bem diferente do meu: são pessoas mais velhas que viajam em busca de empregos sazonais em todo o país. Trabalham em supermercados e em depósitos da Amazon, dormem em acampamentos e acabaram construindo uma comunidade que se ajuda mutuamente.
A maior parte deles foi parar em um trailer não por opção, mas por não conseguir arcar com as despesas de uma casa com o dinheiro da aposentadoria. Outros encontraram na estrada e na comunidade uma alternativa e um novo motivo para viver: “Sempre foi meu objetivo fazer com que as pessoas soubessem que elas têm opções”, conta Bob Wells, um dos personagens do filme e presidente da Homes On Wheels Alliance (Aliança das Casas Sobre Rodas). Bob se tornou nômade após o suicídio do filho e acredita que a estrada tenha lhe proporcionado um novo propósito para sua vida.
Mas com todas essas óbvias diferenças, não seriamos todos – dos nômades aposentados vivendo em trailers aos millenials hipsters adeptos do trabalho remoto – vítimas do mesmo capitalismo tardio? Não estamos, cada um do seu jeito, tentando encontrar nossos escapes diante do trabalho precarizado e da crescente uberização dos serviços?
Na internet, o filme foi acusado de glamourizar a precariedade e de adotar um viés pouco crítico com relação ao capitalismo americano. Mas como bem disse essa crítica, é na contradição entre os absurdos da sociedade e o maravilhamento com o mundo que mora a beleza do filme e o fascínio dessa história:
É a partir dela [a montagem do filme] que Nomadland pode ir e voltar o tempo inteiro em registros distintos: flutuar entre o viver livre e o viver mal, entre o trabalho braçal e o ócio criativo, entre o tédio da rotina e o maravilhamento com a natureza.
Do lado de cá, dessa geração a quem prometeram tudo e deram tão pouco, a vida nômade também se manifesta com a mesma dualidade: viajar o mundo e adoecer por burnout no meio do caminho, tirar uma foto na praia e se sentir culpado por não produzir o tempo todo. Conhecer gente do mundo inteiro e trabalhar em troca de hospedagem em hostels. Tudo isso sem saber se, um dia, poderemos nos aposentar.
É irônico perceber que, durante a pandemia, me vi novamente naquela situação que me jogou na estrada lá atrás: sem salário, sem direitos, sem seguridade social. Assim como daquela vez, corri atrás dos frilas e abracei a liberdade. Fui morar na praia.
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* Enquanto escrevia esse texto, me lembrei de uma amiga também pediu as contas em uma agência e foi ser freelancer em Itacaré. Quando questionei seus motivos, ela disse: cansei de ganhar mal e ficar presa em horário comercial. Se é para ganhar mal, pelo menos vou ser livre.
Eu te ajudo a cair na estrada também!Nos links abaixo há alguns serviços que eu utilizo e que me ajudam muito em minhas viagens. |
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