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O Pé de Manga e outros fantasmas

Estava ali há Deus sabe quantos anos. Aquela árvore enorme e folhuda ocupava uma boa parte do quintal da fazenda desde que a família se mudara para lá e, muito antes disso, certamente já cumpria seu ciclo incessante de folha, flores e frutos doces e maduros a cada mudança de estação. Raquel passava por ela todos os dias a caminho da piscina, e todos os dias desviava o olhar para longe, sem saber direito o que não queria ver. 

No início, passava tardes inteiras sob sua sombra, catando as mangas mais rosadas e carnudas que davam nos galhos mais baixos e nos nem tão baixos assim. Chupava com gosto, deixando o suco escorrer pelo queixo e melar os dedos. Mas eram tantas mangas que nem família inteira dava conta, sempre sobravam algumas apodrecidas no chão. 

Com o tempo, no entanto, a constante presença da mangueira no quintal começou a assombrá-la, e Raquel começou a evitar não apenas a árvore, como também as próprias mangas. De onde quer que estivesse na propriedade, tinha a impressão de que aquela copa enorme e arredondada a observava, em uma sentinela soturna. À noite, quando o vento soprava na folhagem, podia escutar o farfalhar de suas ramas, e o entendia como um aviso sutil de que ela estava presente. Nessas horas, Raquel olhava para a imagem de Nossa Senhora pendurada na parede e rezava baixinho até dormir. Passou a dar voltas enormes só para não ter que encará-la, mas às vezes, quando lavava a louça do almoço, arriscava espiar da janela da cozinha, e nessas ocasiões nunca tinha certeza se era ela quem olhava a árvore, ou se era a árvore que olhava para ela. 

A única hora em que era impossível evitar a mangueira era quando a família se reunia em torno da piscina. Eram esses os momentos nos quais a árvore se impunha com mais vigor, escondendo o sol com sua sombra fria e zombeteira. Foi Anderson, seu irmão, o primeiro a se manifestar sobre a presença incômoda. “O pé de manga atrapalha a piscina”, disse, desencadeando uma discussão que se estendeu ainda por alguns encontros. Corta, não corta. “Eu voto que corta”, disse Raquel. Cortaram. 

Foram preciso três homens para dar conta do tronco maciço, que no mesmo dia foi transformado em lenha. Mas naquela e nas tardes seguintes, sempre que o sol incidia no local onde antes ficavam as folhas da mangueira, a sombra da copa voltava a se projetar sobre a piscina.

Eu te ajudo a cair na estrada também!

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade digital. Atuo como Publisher Independente desde 2010 e sou especialista em Escrita Criativa, Estratégia de Conteúdo Digital e Jornalismo de Viagem. Sou co-criadora do renomado blog de viagens 360meridianos, LinkedIn Top Voice 2024, e autora da newsletter Migraciones. Nas redes sociais, atendo sempre pela arroba @natybecattini.

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