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Crônicas

O terremoto do México e as dores do recomeço

Xu é a palavra em zapoteco para terremoto. O nome deriva de uma onomatopeia para o som que a Terra faz quando treme. Em Juchitán de Zaragoza, um dos municípios mais afetados pelo sismo de magnitude 8.2, que atingiu o sul do México em 7 de setembro de 2017, o substantivo ganhou um novo significado nos últimos meses.

“Antes, os pequenos tremores eram parte da nossa vida, algo normal. Agora, quando escutamos um ruído parecido ao xu, prendemos a respiração. Às vezes, é um carro que arranca ou o barulho de uma moto, mas o coração já dispara com o medo de que aconteça outra vez”, conta Griselda Santiago, uma jovem mulher que atua como voluntária na cozinha comunitária instalada na sétima sessão da cidade. A casa dela foi uma das 4 mil vivendas que sofreram dano total ou parcial em decorrência do sismo. “Perdemos a casa e algumas coisas, isso a gente recupera. Teve gente que perdeu a família”, diz.

O zapoteco é uma língua metafórica

Os nomes das coisas carregam em si analogias, imagens, poesia. Para dizer que chove, se diz que caem pedras de água. Estar feliz é ter o clítoris vivo. Naquele dia, para os zapotecos, o mundo havia perdido seu rosto, tamanha a desolação que se encontrava pelas ruas.

Três meses depois dos abalos, as marcas deixadas por eles ainda são visíveis nas rachaduras das casas que permaneceram de pé, nas janelas quebradas e na memória dos moradores de Juchitán. Os escombros que ainda não foram recolhidos obstruem as ruas e calçadas e se misturam ao material de construção que aos poucos chega para reerguer as paredes onde sobraram apenas vazios.

Quem vive ali sabe que Juchitán terá que conviver com as cicatrizes da tragédia por muito tempo. Estima-se que a recuperação total da cidade levará até 10 anos. No meio tempo, a vida local se adapta ao novo panorama.

Leia também: Dia dos Mortos no México: não morremos até que nos esqueçam

A ponte principal que ligava as duas margens do rio ainda está interditada, mas os moradores já se acostumaram aos caminhos alternativos. O edifício no qual funcionava o mercado desabou, mas os feirantes montaram suas barracas nas ruas e praças próximas a eles. Agências de banco inteiras foram reduzidas a pó, por isso é preciso viajar a municípios vizinhos para resolver pendências. As escolas, que estiveram fechadas nos últimos meses, retomam as classes em ritmo lento. Cada turma comparece em um dia da semana, muitas vezes para ter as aulas em pátios abertos, já que os prédios ainda estão afetados.

Diante desse cenário, a cultura comunitária do povo zapoteca tem sido de grande importância. Vizinhos e amigos trabalham juntos para superar as dificuldades. O pequeno galpão que serve de sede para a Assembleia Popular do Povo Juchiteco está repleto de doações de alimentos, roupas, material de limpeza e de construção.

Através da Totopo, uma rádio comunitária que dá avisos de interesse geral e promove a cultura e o uso da língua zapoteca, Carlos Sanchez convoca voluntários, administra a distribuição de cestas básicas e criou um sistema de uso coletivo de ferramentas, dependendo das necessidades de cada família. “O terremoto nos trouxe muitos danos, mas também nos trouxe solidariedade. Temos que saber tirar algo positivo do que aconteceu, como o fortalecimento da nossa irmandade”, diz ele.

“O Mercado foi interditado, mas os feirantes ocuparam a praça”

“Sede da rádio comunitária reúne doações”

Para fortalecer esse sentimento de coletividade, o artista plástico juchiteco Francisco Toledo organizou, com a ajuda de voluntários, 45 cozinhas coletivas espalhadas por toda a região. Nos primeiros dias, os militares enviados pelo governo mexicano encarregaram-se de preparar e distribuir as refeições, mas o artista se deu conta de que isso individualizava o processo e passou a visitar os albergues para propor uma forma diferente de organização. “A adesão foi imediata. Logo as senhoras começaram a buscar suas panelas e utensílios de cozinha nos escombros, usaram a madeira que encontravam para fazer lenha”, conta o historiador Rodrigo López, que ajuda levando doações para as cozinhas.

Cada cozinha consome 10 kg de carne por semana, 400 kg de tortilla, 4.000 pães e 360 ovos por dia. Por isso, a mobilização de toda a comunidade é importante para arrecadar os alimentos necessários, já que nem tudo chega através das doações. Para ele, a iniciativa funcionou tão bem porque se baseia na cultura e tradição do povo, que foi fortemente abalada nos primeiros dias pós-terremoto. “As cozinhas reproduzem a mesma estrutura de organização comunitária que já existia na nossa cultura. Nos casamentos, as mulheres mais velhas se reuniam para cozinhar para toda a comunidade, e cada um tinha sua função. Agora, o mesmo acontece na hora de preparar as refeições coletivamente”, explica.

Não se sabe ao certo quantas pessoas as cozinhas alimentam, mas estima-se que cada uma atenda cerca de 300. As mulheres mais velhas se encarregam do preparo da comida, mas cada pessoa beneficiada ajuda de uma forma. Zequele, de 5 anos, é um dos voluntários mais jovens. Ele carrega e distribui itens de higiene pessoal. Sua irmã Itália, de 10 anos, e a amiga Isabel, de 8, distribuem o pão e contam quantas tortillas foram entregues naquele dia.

“Distribuição de pães na cozinha comunitária de Juchitán”

“Casa parcialmente destruída no sismo”

A cultura também influenciou outras ações. Ao receber as roupas que chegavam pelas doações, muitas mulheres zapotecas se sentiam desconfortáveis. Acostumadas a vestir-se com o huipil, o traje tradicional composto por uma camisa de algodão bordada com flores coloridas e uma saia comprida, elas teriam que se contentar com calças e camisetas.

Foi observando essa situação que o escritor Elvis Guerra mobilizou a comunidade com o projeto “Minha indumentária é a outra metade do meu coração”, que tem como objetivo arrecadar doações de tecido para a confecção dos trajes e reativar a economia local através da contratação de costureiras e modelistas. “Percorremos as colônias de Juchitán e distribuímos quase 2000 peças até o momento”, conta ele.

Com apoio do Instituto Nacional de Línguas Indígenas (INALI), a poeta zapoteca Irma Pineda convocou outros escritores e artistas locais para ministrarem oficinas de música, pintura e escrita criativa com crianças cujas famílias perderam as casas. Rodrigo López foi o responsável pelas oficinas em um albergue instalado no quinto setor da cidade. Ele acredita que as atividades foram uma importante ferramenta para que as crianças expressassem seus sentimentos com relação ao terremoto e aprendessem a lidar com eles.  “Em momentos como esses, é normal que as pessoas se concentrem em conseguir comida e itens de primeira necessidade e acabem esquecendo-se da dimensão subjetiva. As crianças já tinham onde dormir e o que comer, mas sentimentalmente não estavam bem. Espontaneamente, começaram a expressar suas angústias nos trabalhos de escrita”.

Nas atividades, Rodrigo tratou de resgatar as canções tradicionais de seu povo. Uma das mães relatou mais tarde que, cada vez que havia uma réplica dos tremores, as crianças começavam a cantar essas músicas para espantar o medo.

Em outro exercício, ele pediu que as crianças escrevessem o que eram hoje e do que se lembravam: “Eu percebi que, para elas, a vida se dividiu entre antes e depois do terremoto. Elas sempre tratavam de relacionar a situação de contingência em que viviam sem que eu lhes pedisse”.

“Estaba temblando. Xu.

Tembló más fuerte. Xu.

Fue un terremoto. Xu.”

Poesia de uma das crianças participantes das oficinas de escrita criativa

Rodrigo também fez questão de valorizar a língua zapoteca durante suas aulas. Ao notar que as crianças tinham receio ou vergonha de se expressar na língua materna, ele passou a incentivar seu uso através de músicas e jogos. Para ele, depois do terremoto, os patrimônios imateriais de Juchitán adquiriram uma dimensão ainda mais importante.

“O representativo do zapoteca em Juchitán era nosso templo, a casa de cultura, o palácio que caiu, as festas que foram interrompidas com a tragédia. Isso mudou, já não temos nossos patrimônios materiais para referência, mas temos as tradições, a organização comunal, a língua. Se resgatamos isso, podemos reconstruir Juchitán por meio das nossas manifestações culturais e de toda a teia simbólica que se organiza pelo idioma zapoteco. Esses serão os pilares para recompor a nossa identidade depois do sismo”, afirma.


Esse post foi originalmente publicado em Outubro de 2017 no Projeto Wakaya e no 360meridianosdepois reeditado em uma versão diferente que compõe o livro Encontros, Histórias de Viagem 

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade digital. Atuo como Publisher Independente desde 2010 e sou especialista em Escrita Criativa, Estratégia de Conteúdo Digital e Jornalismo de Viagem. Sou co-criadora do renomado blog de viagens 360meridianos, LinkedIn Top Voice 2024, e autora da newsletter Migraciones. Nas redes sociais, atendo sempre pela arroba @natybecattini.

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