Um bar descolado na entrada de uma comunidade de Medellín toca uma dessas músicas eletrônicas que costumamos escutar em bares com drinks caros e festas no fim de tarde. “Somos de Calle”, diz o letreiro. Mas quem frequenta o lugar aquele dia está longe de ser da rua. Eu me debruço sobre o parapeito do terraço e vejo a vida comum da Comuna 13.
O venezuelano que vende hambúrguer em um carrinho de podrão que, horas antes, caprichou para mim no bacon e me mostrou um molho de maionese e abacate, típico do país que ele deixou em busca de oportunidades melhores. A guia local que reúne turistas para conhecer os graffitis e a história do bairro. Os dois senhores que tomam uma Águilla Light sem se importar que está meio quente e jogam conversa fora em um boteco na esquina. A menina que se debruça sobre um livro de colorir em uma mesa de plástico de uma sorveteira.
Como deve ter sido nascer ali?
Habitar aquele espaço não como uma estrangeira curiosa, mas como casa?
A Comuna 13 é um dos bairros mais icônicos de Medellín. Durante anos, o lugar ficou conhecido como o bairro mais perigoso do mundo, o ponto exato do entrelaçamento das guerras entre grupos paramilitares, narcotraficantes e as forças de segurança do Estado que assombraram a Colômbia entre os anos 1980 e 2000.
Hoje, a realidade é outra. Considerada um dos principais exemplos da renovação urbana da cidade, a Comuna virou uma galeria de arte urbana a céu aberto e se reinventou graças aos inovadores projetos de mobilidade que incluem escadas rolantes de uso público para levar aos pontos mais altos dos morros; projetos sociais que engajam a juventude local e, não posso deixar de citar, pela renda e oportunidades de emprego geradas pelo turismo de base comunitária. O bairro é o ponto turístico mais visitado de Medellín, e grande parte da população local atua no setor de serviços.
Mas menos que a história contada nos livros, o que me interessava ali era a história cotidiana das pessoas: de quem viu de perto essa transformação acontecer; de quem perdeu alguém pra guerra; de quem só conhece a Comuna 13 em sua versão colorida e escuta assustado os casos contados pelos pais.
A Colômbia tem tanto de Brasil e tão pouco de mim.
No Tayrona, indígenas Kogi vendem suas bolsas de artesanato colorido. Em Santa Marta, senhoras se sentam à porta de casa para fugir do calor e fofocam enquanto escutam música alta que vem da sala. No Poblado, meninas novas demais oferecem seus corpos para gringos bêbados e nojentos.
E ali está o pescador em sua canoa, lançando sua rede no mar. Poderia ser eu naquele barco, trabalhando ao amanhecer com mãos calejadas e o coração ansioso por uma boa pesca?
Nas estradas, aeroportos, vilas e cidades desconhecidas, sou constantemente confrontada com reflexos de vidas que nunca vou viver. Viajar é entrar em contato com um multiverso de realidades e existências não exploradas; realidades muito diversas das minhas, mas ainda assim tão concretas. Não são personagens ou estatísticas de papel: respiram, movem-se, riem e choram, vivem e morrem.
E se, para mim, é impossível viver essas vidas de fato e entendê-las de dentro para fora, com todas suas dores, alegrias e desafios, viajar me ajuda a me transportar para elas por alguns instantes. Permitir que me toquem da superfície, compreender todas as possibilidades e realidades que só um planeta tão diverso de 8 bilhões de vidas pode ter. Furar a bolha mesmo.
Quem eu seria, se não fosse quem sou?
Antes das viagens, era a ficção que fazia com que eu me transportasse para outras peles. Na faculdade, li O Apanhador no Campo de Centeio e passei dias agindo como Holden Caulfield, achando todo mundo meio idiota, meio cretino. Ainda criança, imaginei como seria ser um órfão vivendo nas ruas de Londres no século 19. E, não faz muito tempo, mandei uma mensagem questionando quanto tempo eu sobreviveria em um apocalipse zumbi, depois de maratonar The Last of Us.
A resposta foi: aproximadamente 5 horas.
Há muito em comum entre os livros e as viagens, aliás. São jornadas narrativas, no fim das contas. E talvez venha daí, dessa possibilidade de viver outras vidas, o potencial de ambas as experiências de gerar empatia.
Quando nos aproximamos dessas vidas estrangeiras, compreendemos que a nossa experiência não é única, nem absoluta. Existem tantas outras vidas possíveis, todas elas tão reais e válidas quanto a nossa.
Confrontando-as, entendemos não apenas que há um outro, mas localizamos também o nosso lugar no mundo. E aí reside o paradoxo de tudo isso. Ao nos permitir vislumbrar outras realidades possíveis, esses encontros reafirmam e redefinem nossa própria existência. Descobrimos onde estamos no meio dessa trama de bilhões de pessoas.
E, nesse jogo de representações, vejo refletidas nas pessoas não apenas as vidas que poderiam ter sido, mas também, e talvez mais importante, o que sou e o que escolho ser.
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