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Crônicas

Visita ao Shah Cheragh, Shiraz: Sobre tiros e caleidoscópios de espelhos

O mausoléu de Shah Cheragh, em Shiraz, é o local de culto mais impressionante que eu já visitei. Do lado de fora, é uma portinha de nada, não chama a atenção de ninguém, e eu não tinha ideia do que ia encontrar lá dentro porque não havia pesquisado muito antes da visita. Mas alguém disse, ou leu em algum lugar, que aquilo ali só era menos importante que Meca e, por isso, eu fui.

Deixei o passeio para o último dia na cidade porque já não aguentava mais ver mesquita. A arquitetura islâmica é, para mim, a mais bonita, mas até a beleza dos mosaicos cansa quando é tudo que você vê por dias a fio.

No dia anterior, fiz um bate-volta para as ruínas de Persépolis, que ficam a 70 quilômetros dali. A cidade foi fundada por Dário, o Grande, e serviu de capital cerimonial para o Império Persa. Dário era pai de Xerxes, o mesmo que Rodrigo Santoro encarnou quando foi enfrentar os 300 de Esparta montado em um elefante.

Andar por aquelas ruínas tem o mesmo peso histórico de ver o Forum Romano ou a Acrópole de Atenas, mas com uma cara menos ocidente, sabe? As estátuas que restaram deixam bem clara essa referência estética distinta. Tem menos daquela perfeição-simétrica-obsessiva-da-proporção-harmônica e mais espaço para figuras simbólicas e imaginativas, como os enormes grifos e touros alados que adornavam a cidade. Para você ter uma ideia, as escadas são em zigue-zague. Dá para ver uma projeção de como a cidade era antes aqui.

“A entrada de Persépolis e seus grifos alados”
“Ruínas de Persépolis lembram a Grécia”

Tudo isso, é claro, foi feito antes do domínio islâmico, que proíbe a reprodução de figuras vivas, em especial daquelas que sequer existem. Quando eles chegaram, entrou um pouco dessa perfeição simétrica também, de uma forma completamente diferente da que vemos na Grécia. No mundo islâmico, a perfeição é representada pelos mosaicos. Caleidoscópica.

Na saída de Persépolis, falei em português com uma desconhecida pela primeira vez em meses. Uma brasileira do interior de São Paulo me ouviu conversando com o Jeff e veio puxar papo. Conversa vai, conversa vem, ela diz: “Vocês também já estão cansados de comer kebab e ver mesquita?”.

Sim, já estávamos. Mas, no dia seguinte, lá fomos nós ver o tal do Shah Cheragh depois de almoçar kafta de cordeiro.

Para entrar, é preciso colocar um chador. É assim em todos os templos do Irã. Não basta um véu na cabeça, é preciso cobrir o corpo inteiro com a túnica, mas eles sempre emprestam sem custo adicional e deixam umas senhorinhas à postos para te ajudar a colocar. Não é fácil de vestir e, se você tentar fazer sozinha, ele provavelmente vai ficar escorregando o tempo todo, tolhendo seus movimentos. Não faço ideia do que diabos as senhorinhas fazem diferente, mas conseguem pegar o que parece uma toalha de mesa e transformar em uma túnica firme, que emoldura o rosto e permite que você use suas mãos para outras coisas mais funcionais. Deve ser o mesmo segredo que só as iranianas têm para conseguir jogar o véu displicentemente sobre a cabeça sem deixá-lo escorregar.

Com o chador corretamente vestido, ainda é preciso passar por uma revista e por um detector de metais e aguardar que um dos guias credenciados estejam disponíveis para te acompanhar na visita antes de atravessar os portões para o templo.

Bahram* chegou depois de uns 10 minutos de espera e se apresentou como um apaixonado por história, arte e literatura persa. Ele contou isso após recitar um poema persa gravado em azulejos azuis na entrada do templo. 

“Os persas amam poesia”, disse.

Ele também nos contou que o motivo pelo qual o Shah Cheragh é considerado uma mini-Meca é que o templo é um dos mais importantes locais de peregrinação dos muçulmanos xiitas de todo o mundo. Construído para abrigar o corpo do irmão de um dos oito imame dessa vertente do Islã, acredita-se que o santuário tenha poderes miraculosos e que possa conceder bençãos aos visitantes e cura para doenças.

O pátio interno, a principio, se parece bastante com o de outras grandes mesquitas do Irã, como a de Isfahan, cidade em que havíamos estado alguns dias antes. Depois de uma breve explicação histórica, Bahram pede que eu me separe deles e tire os sapatos para entrar no lado feminino do mausoléu. “Te encontraremos aqui fora”, ele disse.


E, só então, ao cruzar o portal, você entende.

Todas as paredes internas do Shah Cheragh são cobertas por minúsculos espelhos refletindo a luz colorida dos vitrais das janelas e um ao outro infinitamente. Caleidoscópio.

Nunca.

Nem na Hagia Sofia. Nem no Taj Mahal. Nem na Sagrada Familia.

Nunca antes eu tinha tido vontade de chorar só por ver tanta beleza assim, reunida em um local de culto.

Eu andei um pouco por ali, porque era isso que eu mesma me autorizava a fazer ao visitar um local sagrado de uma fé que não é a minha, mas minha vontade era me jogar no chão com as outras mulheres e me entregar à contemplação e ao completo êxtase da experiência sensorial que era estar ali.

Shah Cheragh, em persa antigo, significa Rei da Luz.

“Ala masculina do Mausoléu”
“Ala Feminina do Mausoléu”

Ônibus para Yazd, 26 de outubro de 2022

Cinco dias depois da minha visita ao templo, embarquei em um ônibus que deixava a ilha de Qeshm, no Golfo Pérsico, para Yazd. Já acomodada na poltrona, pronta para desmaiar sob o efeito do dramin, peguei o celular para uma última scrollada nas redes sociais.

Foi Jeff quem viu primeiro a notícia:

“Teve um ataque terrorista no mausoléu de Shiraz”.

Quando você fica assim, tão perto de uma tragédia, a primeira sensação é o choque. Depois, vem um misto de alívio por ter escapado dela, e a sensação de que qualquer mudança de planos poderia ter te colocado no meio de um fogo cruzado. Alterar a ordem da viagem, mudar a data de chegada ao país, encurtar ou prolongar uns dias no roteiro. Nós fizemos tudo isso naquelas três semanas no Irã, e quis a sorte que a visita ao Shah Cheragh ocorresse cinco dias antes, e não depois.

Embora o Estado Islâmico tenha assumido a autoria do atentado, não faltaram especulações a respeito das reais motivações por trás dele. Afinal, nada mais conveniente para um governo tirânico que, pela primeira vez em décadas, deixou de ser temido por seu povo, que a criação de um inimigo externo para unir um país prestes a rachar. A República Islâmica nega todas as teorias da conspiração que se seguiram, mas seus líderes tentaram efetivamente se apropriar politicamente do episódio para exigir o fim dos protestos no país.

Nos dias que se seguiram ao atentado, o governo exibiu exaustivamente na TV as imagens registradas pelas câmeras internas do templo. Das recepções dos hotéis, dos restaurantes, das pequenas mercearias, de todos os lados a gente via homens armados invadindo o espaço reservado para mulheres e atirando em fiéis que rezavam ajoelhadas sob o mosaico caleidoscópico de espelhos. De novo e de novo.

Conforme as informações se confirmavam e eu, obcecada, lia tudo a respeito, descobri que os terroristas entraram no templo sem passar pelos rigorosos procedimentos de segurança. Para isso, mataram o segurança na entrada e um dos guias credenciados que aguardava ali por um grupo de turistas. Em seguida, caminharam até o prédio principal, onde abriram fogo contra as mulheres.

15 pessoas foram assassinadas.

Nunca descobri se Bahram sobreviveu.

*O nome original foi alterado para evitar a identificação do guia

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Nos links abaixo há alguns serviços que eu utilizo e que me ajudam muito em minhas viagens.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade digital. Atuo como Publisher Independente desde 2010 e sou especialista em Escrita Criativa, Estratégia de Conteúdo Digital e Jornalismo de Viagem. Sou co-criadora do renomado blog de viagens 360meridianos, LinkedIn Top Voice 2024, e autora da newsletter Migraciones. Nas redes sociais, atendo sempre pela arroba @natybecattini.

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