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Crônicas

Casas que se movem e outras tradições de Chiloé

Parada em frente à pequena tenda na entrada do Mercado de Artesanías de Dalcahue, a velhinha me mostrou seu sorriso sem dentes. “São de lã chilota. Para o frio”, disse, apontando para os produtos dispostos sobre a mesa. Entre ponchos, gorros e meias grossas, estavam algumas bonecas coloridas típicas do artesanato local. Fazia frio, era verdade, mas o protetor de pescoço que eu comprei foi mais pela simpatia que pela necessidade. Assim como o arquipélago, a velhinha do Mercado de Artesanías transmitia sossego e receptividade, como se cada sorriso fosse um convite a puxar uma cadeira, encher uma xícara de chá e falar sobre a vida.

Marcos nasceu em Santiago, mas resolveu mudar-se para Chiloé há dois anos para montar um hostel com seu sócio. Ele afirma que o que mais lhe encanta no arquipélago é justamente a rica cultura e a personalidade acolhedora dos habitantes dali. “Aqui o tempo passa mais tranquilo. Me cansei do ritmo de Santiago. Chiloé é assim, não é pra correr”, contou, enquanto dava um gole em uma grande taça de navegado, uma bebida de inverno parecida com nosso quentão, que ele oferecia como cortesia aos hóspedes para espantar o frio.

Chiloé está cercada de brumas, de Oceano Pacífico e de mistério. Não se sabe nem mesmo ao certo quantas ilhas fazem parte do arquipélago localizado na porta de entrada da região patagônica e separado do Chile por um canal e uma hora de navegação.

Estima-se que seja algo entre 33 e 40 ilhas, já que, dependendo da maré, pedaços de terra que antes eram separados por água podem se transformar em uma coisa só. Os outros mistérios vêm de sua gente, já que o relativo isolamento propiciou o desenvolvimento de uma cultura única, com patrimônios materiais e imateriais que só se encontram ali. São lendas, costumes e histórias que conferem uma atmosfera mística ao lugar, como se Chiloé tivesse um pé nesse mundo, outro no realismo mágico.

O arquipélago é a casa de seres fantásticos, como o Trauco, demônio que seduz e engravida as moças da ilha, e a Pincoya, um espírito das águas que controla a abundância de peixes na região. As lendas são tão arraigadas na vida local que esculturas com seus personagens estão à venda por todas as partes e não é difícil encontrar quem jure de pé junto que já deu de cara com uma dessas criaturas mitológicas por aí.

O lugar já teve até mesmo sua própria sociedade de bruxos, a “Recta Província”, também conhecida como “La Mayoria” e “Tribunal de la Raza Indígena”.

Segundo conta a lenda, a sociedade surgiu em 1786, quando o espanhol José Manuel de Moraleda dirigiu uma expedição para cartografar o arquipélago. Ele se apresentou como um poderoso feiticeiro e desafiou o poder de Chillpila, uma machi (sacerdotisa mapuche) de Quetalco.

Ela o derrotou, deixando seu barco em seco. Como prêmio, levou do espanhol um livro de magia conhecido como O Livro da Arte, Levistério ou Revisório que, mais tarde, instruiu outros membros do povo mapuche nas artes da bruxaria e na criação da sociedade. 

A Recta Província foi declarada associação ilícita em 1880 e acabou se desarticulando, mas sua existência colocou lenha na fogueira do imaginário popular e deu brecha para a criação de toda a sorte de lendas e causos sobre bruxos e magia.

As paisagens do arquipélago não são as que se espera do sul do Chile. Em vez dos picos nevados, predominam as vastas fazendas nas quais criam-se ovelhas e planta-se os mais de 400 tipos de batata que são a base da alimentação local. É da agricultura e, principalmente, da pesca, que Chiloé tira seu sustento.

As algas, salmão e mariscos abastecem não apenas o mercado interno como são onipresentes nos pratos da gastronomia chilota, que tem como característica a mistura de frutos do mar com carnes. Assim é o curanto, prato mais icônico da ilha, que leva tudo isso aí e mais um pouco e é preparado durante um ritual no qual se acende uma fogueira no chão para assar sobre as folhas de nalca.

O local também é conhecido pela enorme diversidade natural que se desenvolveu ali. A Península de Rilán é o único lugar do mundo em que convivem as espécies de pinguins de Magalhães, que vêm da Patagônia, e os de Humboldt, do Equador. Ambas as espécies passam por ali de março a setembro, época de reprodução. Barcos que saem de Ancud permitem que os visitantes vislumbrem um pouco dessa vida animal. Perto de Ancud também está a Baía de Caulin, conhecida como “Santuário das Aves”. No final de janeiro, há em Caulín uma festa muito famosa que celebra os costumes da região.

A arquitetura única encontrada nas ilhas faz sua fama mundo afora. Os icônicos palafitos coloridos são a foto mais desejada pelos turistas. Originalmente usadas como casas de pescadores, elas já estiveram espalhadas por toda ilha, mas muitas foram destruídas nos terremotos de 1960 e 1986. Hoje, estão restritas a algumas regiões de Castro, a capital, e muitas funcionam como pousadas e restaurantes para turistas. São feitas de alerce, uma madeira leve, flexível e resistente à água, que era cortada em pequenos pedaços, chamados tejuelas (escamas), e usada para revestir o teto e as paredes sem a necessidade do uso de pregos.Cada família dava à tejuela um corte diferente, e os padrões eram usados para conferir identidade às casas.

As tejuelas usadas nas casas estão também nas igrejas de Chiloé. Construídos em madeira ao longo do século 18, os templos possuem um estilo peculiar, característico da região. São 140 deles espalhados pelas ilhas. 16 já foram declarados Patrimônio da Humanidade pela Unesco.

Às vezes, acontece de uma família ter que se mudar e, com ela, vai também a casa inteira. Paredes, teto e tudo mais. A “tiradura de casa” envolvia amigos e vizinhos que ajudavam a puxar a residência para a nova localização, por terra ou por água, com ajuda de carroças ou barcos. Hoje, esse evento é bastante raro, mas algumas comunas realizam simulações das tiraduras de casa com fins turísticos e de preservação das tradições locais. 

Esse é só um exemplo de trabalho realizado por uma “minga”, um evento de cooperação entre chilotas. É quando amigos, parentes e vizinhos se reunem para, em conjunto, fazer um trabalho para alguém. Pode ser uma reforma, conserto ou mudança. No final, o beneficiado oferece comida e bebida aos amigos e o trabalho vira uma grande festa que reforça a organização comunitária da ilha.

Mais um costume que resiste ao tempo e às mudanças que a vida moderna pouco a pouco instaura na ilha.

O avanço lento, mas implacável, dessas mudanças teve como manifestação máxima a construção, em 2014, do primeiro shopping center em Castro. Prefeito e moradores apoiaram o projeto, ao afirmar que mereciam ter um lugar para satisfazer suas necessidades de consumo. Afinal, a ilha não está parada no tempo e eles querem ter acesso a itens e marcas como qualquer cidadão chileno.

Mas o gigante monstruoso de concreto e metal alterou de forma significativa o panorama de uma área patrimonial de palafitas e igrejas, descaracterizando o lugar e sobressaindo-se sobre todo o resto. Talvez seja impossível parar o progresso. Mas que Chiloé saiba avançar sem perder sua magia.


Disclaimer: Esse texto foi publicado no 360meridianos em 2018, mas foi retirado do ar em uma recente auditoria de conteúdo. No entanto, eu não gostaria que ele sumisse da internet e, por isso, estou usando esse espaço e a Migraciones para republicar artigos.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade digital. Atuo como Publisher Independente desde 2010 e sou especialista em Escrita Criativa, Estratégia de Conteúdo Digital e Jornalismo de Viagem. Sou co-criadora do renomado blog de viagens 360meridianos, LinkedIn Top Voice 2024, e autora da newsletter Migraciones. Nas redes sociais, atendo sempre pela arroba @natybecattini.

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