Perambular sozinha pelas ruas de Quito teve um sabor diferente naquela manhã. Levando minha câmera fotográfica e meu caderninho de anotações, eu pretendia visitar o Garcia Moreno, um antigo complexo prisional no bairro de San Roque, próximo ao centro histórico da capital equatoriana. O lugar havia sido fechado pelo governo alguns anos antes, depois que histórias sobre abuso das autoridade e más condições de vida dos presos ganharam a mídia – a cadeia, diziam, chegou a ter uma ocupação de 400% (and counting…) e foi palco de inúmeras rebeliões entre os detentos.
Alguns meses antes, quando eu preparava as pautas que eu queria escrever durante essa viagem, li em pés de páginas obscuros da internet que o complexo havia sido transformado em museu. Logo, uma vaga ideia de reportagem começou a tomar forma na minha cabeça. Eu poderia – pensei – escrever sobre a visita, fazendo um link com a história do local e, ainda, falar sobre como o fechamento afetou a vida dos moradores e comerciantes do bairro.
Naquela época, eu sentia uma mistura de empolgação e deslumbramento que raras vezes havia sentido antes. Tinha acabado de desertar do Wakaya, uma investigação audiovisual sobre as línguas originárias da América Latina e, embora minhas obrigações profissionais tenham tornado inviável minha permanência no projeto, eu sentia que estava, finalmente, fazendo aquilo que eu sempre quis fazer: viajar e contar histórias. Mesmo quando comecei a viajar sozinha, passei a organizar meus roteiros com base nas histórias que eu queria escrever, ainda que isso significasse sair um pouquinho do meu caminho. Ainda hoje, alguns dos textos que mais amei escrever na vida saíram dessa viagem, assim como algumas das histórias que eu mais me orgulho de ter vivido.
E foi atrás de uma história assim que eu subi as ladeiras de Quito naquela manhã. Chegando lá, porém, não havia museu. Apenas um prédio feio e degradado, fechado para visitas. Como não encontrei nenhum guia, recepção aberta ou qualquer pessoa para dar informações, desci, de mãos abanando, a rua que ligava o bairro ao centro. No caminho, uma portinha me chamou a atenção. Lá dentro, um pequeno ateliê exibia, tumultuando as paredes, inúmeros brinquedos e objetos de madeira.
Entrei, atraída por algo que eu poderia levar de presente, e dei de cara com um senhor simpático, usando um jaleco sujo e uma boina de veludo marrom. Sorridente, ele quis saber de onde eu era. Conversamos.
Jorge Rivadeneira Granda era bastante conhecido em Quito. Campeão nacional de jogo de peão, ele sabia equilibrar o brinquedo por minutos a fio na mesa, na palma das mãos, sobre a ponta de uma caneta que ele segurava com os lábios. Um fera.
“Jorge e os peões”
“Jornais pendurados na porta do atelier”
Mas as competições eram um hobby. Era com a renda da pequena lojinha de brinquedos de madeira que ele pagava as contas. Aprendeu a domar a madeira aos 12 e, nas proximidades dos 90, ele nunca havia pensado em parar. Se orgulhava de levar para frente o ofício, herdado de seu pai, e era considerado um dos últimos guardiões de uma arte prestes a desaparecer. Em todos os inúmeros recortes de jornais emoldurados em suas paredes, ele era chamado de “El Rey”.
Pensei, empolgada, no inusitado daquela conversa, nas oportunidades e encontros inesperados que as viagens nos proporcionam, em como nunca podemos deixar de nos surpreender. Pedi para tirar umas fotos. Ele aceitou de pronto. E ainda fez graça para a câmera, girando o peão.
E então ele para, guarda o brinquedo no bolso, me olha por um momento e diz:
“Você dança pelada no carnaval?”
Atônita, pedi que ele repetisse a pergunta. Talvez eu tivesse entendido mal? Sem qualquer sinal de constrangimento, aquele homem que poderia ser meu avô continuou: “No Brasil, nos desfiles de carnaval. Você dança pelada naqueles carros, assim como eu vi na TV?”.
Soltei uma risadinha sem graça. Aquela risada que nós aprendemos a dar desde cedo, para despistar. Guardei minha câmera e disse que precisava ir. Continuei ladeira abaixo, até o hostel em que estava hospedada. No caminho, quem agora me acompanhava era um forte sentimento de decepção.
Essa não foi a primeira vez que eu sofri assédio viajando sozinha. Uma vez, saí desorientada pelos corredores do Grand Bazar de Istambul, com todas as luzes de pânico ligadas em meu cérebro, depois que um vendedor me fechou em sua loja com a suposta intenção de me mostrar um espelho.
Jorge, o velhinho apaixonado por peões, nem de perto me fez temer por minha integridade física. Mais que me deixar desconfortável, no entanto, sua pergunta me feriu profundamente.
Não vou aqui, ao menos não agora, entrar mérito do estereótipo que mulheres brasileiras enfrentam no exterior. O que a pergunta de Jorge deixou claro para mim naquele momento é que havia um limite muito claro no quão longe eu poderia ir. O mundo não me daria permissão para viajar, conhecer, explorar, me aventurar, falar com desconhecidos, confiar. Fazer tudo isso sozinha e contar o que eu queria contar. E o motivo para isso era apenas um:
Eu nasci mulher.
E, como uma mulher viajando sozinha, minha prioridade é, e precisa ser, minha segurança. Ao longo desses anos de estrada, já recusei convites, menti minha nacionalidade, precisei ser antipática, fui embora de lugares, inventei um noivo, dei endereço de hospedagem falsa, já gritei, saí correndo, me fiz de sonsa. E, no meio de tudo isso, deixei de viver, conhecer, conversar. Viajar em mundo que nos objetifica e sexualiza o tempo inteiro também nos limita.
Meses atrás, em Boipeba, me vi no meio de uma estrada de areia, à noite, acompanhada de três jovens que eu não conhecia, no caminho para um show de arrocha em um sítio que eu não conhecia. Olhei para o lado, apertei a mão do meu namorado e disse baixinho:
“Se eu estivesse viajando sozinha, eu jamais teria coragem de vir”.
Me dói um pouquinho pensar que essa festa foi uma das melhores experiências daquela viagem, dessas que a gente se lembra pelo resto da vida. E, por pouco, ela também poderia ter sido tirada de mim.
* Ao escrever esse texto, descobri que Jorge faleceu em junho de 2021, em Quito, por “insuficiência cardio-pulmonar”, depois de passar três meses internado. O jornal não menciona se foi consequência da Covid-19.
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