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Crônicas

Viagem ao Irã: Crônicas de um país em ebulição

FRONTEIRA ARMÊNIA – IRÃ, 04 DE OUTUBRO DE 2022

A viagem de Yerevan para Tabriz durou 16 horas, incluindo o tempo que passamos parados na fronteira. Atravessamos à pé a ponte do rio Arax, no meio da madrugada, carregando as mochilas.

Na metade do caminho, as luzinhas que iluminavam o caminho nas cores da Armênia se tornaram vermelhas e verdes. Meus pés cruzaram a linha imaginária e minhas mãos foram imediatamente procurar o tecido que deveria estar sobre minha cabeça: o que aconteceria se o véu escorregasse sem que eu percebesse? Será que eu estava vestida apropriadamente?

Do outro lado, um oficial de imigração me recebeu animado.

“Welcome to Iran!”

TABRIZ, 05 DE OUTUBRO DE 2022

Cheguei em Tabriz no dia de um dos aniversários do profeta. Metade das lojas do centro estava fechada pelo feriado, que deve ser equivalente à nossa Páscoa, mas eu não sabia disso enquanto tentava encontrar um lugar aberto para concluir minha primeira missão no novo país: conseguir um chip local com acesso à internet.

Entrei em uma loja de capinhas de celulares, dessas que por algum motivo nunca fecham, e pedi ajuda à vendedora.

Não, ali não vendiam chips, mas venham comigo, não se preocupem. A menina gesticulava mais que falava, mas foi assim que entendi. Ela abandonou a loja e atravessou a rua, entrou em uma galeria, desceu as escadas, passou por uma porta de vidro que levava a um lugar que se parecia com um cartório. Falou com a atendente em farsi, traduziu pra gente com seu inglês funcional, nos ajudou a lidar com o maço gordo de notas de Rial que carregávamos.

Quando eles dizem que algo custa 1000, na verdade querem dizer 1 milhão. Com a crise econômica, o Rial desaba em queda livre e é mais fácil contar os milhões em toman, uma superunidade oficial da moeda equivalente a 10 rials. Mas as notas continuam as mesmas, então leva um tempo até pegar o jeito.

Enquanto aguardávamos a ativação dos nossos novos números de telefone, a garota me olhou e, como se não pudesse se conter ou precisasse encontrar um assunto para preencher o silêncio, disse: “Você viu as notícias? O governo está matando pessoas por causa de um véu!”

Horas mais tarde, numa loja de roupas no Grand Bazaar, comentei com um garoto de pouco mais de 20 anos sobre como os iranianos eram educados e gentis. “Nós somos bons, mas nosso governo não nos trata bem”, respondeu.

Todos os guias de viagem aconselham a não discutir política durante sua estadia no Irã. Por mais que eu quisesse fugir de conversas sobre um governo que tortura e mata dissidentes, no entanto, esse tema parecia rondar qualquer contato com locais, por mais breve que fosse. Um amigo me falou diversas vezes que a primeira coisa que um irianiano diz a um estrangeiro é “Where are you from?”. A segunda, eu arrisco afirmar, é: 

Nos nao somos como eles

***

Minha obsessão em checar se o véu ainda estava na minha cabeça foi diminuindo com os dias, e eu passei a deixar parte do cabelo à mostra, seguindo a moda das iranianas.

Uma ou duas vezes, vi senhoras de preto me olhando de cima a baixo e senti minha espinha gelar, mas elas não passavam de muçulmanas curiosas com uma estrangeira que se vestia estranho e falava outra língua.

Instituído poucos meses após a instauração da República Islâmica, em 1979, o uso obrigatório do véu no Irã já foi motivo de inúmeros protestos nas últimas décadas e passou por algumas mudanças nos últimos anos, especialmente entre a população mais jovem, que tenta encontrar maneiras de burlar a regra.

Uma pesquisa realizada em 2020 constatou que 58% dos iranianos são contra o véu em qualquer circunstância e 72% se opõe a sua obrigatoriedade. Apenas 15% deles acredita que o uso do hijab em público deve ser compulsório.

Nas cidades maiores e mais modernas, com Esfahan e Shiraz, era comum encontrar pelas ruas meninas e mulheres com a cabeça descoberta. No pescoço, levavam sempre um lenço enrolado, pronto para ser vestido rapidamente caso necessário.

Esses atos de rebeldia não vieram desacompanhados de uma reação conservadora: em 2005, o governo instituiu a Polícia da Moral, responsável por fiscalizar a aplicação das regras de vestimenta islâmicas nas ruas do país. Desde então, a instituição tem lançado campanhas intermitentes a fim de repreender e coagir mulheres vestidas de maneira considerada inapropriada (leiam essa entrevista com um dos agentes na BBC).

Em agosto desse ano, o presidente hiperconservador Ebrahim Raisi decretou que novas formas de vigilância fossem adotadas, incluindo o uso de câmeras para identificar mulheres e a prisão de qualquer pessoas que questionasse ou se posicionasse publicamente contra o uso do véu.

Semanas depois do decreto, a Polícia da Moral matou Mahsa Amini.

“Kandovan, Irã”
Blue Mosque. Tabriz, Irã

Uma coisa interessante que eu observei em minhas viagens é que a vida cotidiana persiste. Contingências, violência ou mesmo guerras não são suficientes para fazer deixar de brilhar as pequenas luzes da resistência: os risos cotidianos, os encontros entre amigos, as idas ao mercado, o almoço de domingo.

No Irã, a vida segue normal. Segue como seguiu nos últimos 40 anos, sob os olhos atentos da milícia revolucionária, sob ameaças de violência, sob o guarda-chuva do fundamentalismo religioso. Tudo segue exatamente como sempre foi, ainda que tudo tenha mudado tão de repente.

“Antes da revolução, as pessoas costumavam admirar os clérigos. Acreditavam que eram amigos do povo, pois eram homens de Deus. Hoje em dia, esse respeito não existe mais. São vistos como agentes do governo”, me contou um guia de Kasham.

No momento em que deixei o país, derrubar os turbantes dos clérigos pela rua e postar na internet era a mais nova forma de protesto contra a República Islâmica. No meio da multidão, jovens encapuzados se aproximam sorrateiramente dos senhores de túnica e, com um tapinha por trás, fazem rolar a touca.

Ridicularizar o inimigo é também uma tática de guerra.

Os iranianos perderam o medo. E isso, como vocês sabem, faz toda a diferença.

SANANDAJ, 09 DE OUTUBRO DE 2022

Sanandaj é a capital do Curdistão Iraniano, uma província no noroeste do país, na fronteira com o Iraque. Os curdos são um grupo étnico nativo com uma população de entre 30 e 45 milhões de pessoas que vivem no Irã, Iraque, Síria e Turquia e são há décadas perseguidos pelos governos desses países, ao reivindicar mais autonomia, independência e liberdade para exercerem sua cultura.

Nascida na cidade de Saqqez, Mahsa Amini era curda e, entre sua família e amigos mais próximos, era conhecida como Zhina. Era esse, na real, seu verdadeiro nome. O governo que a matou por mostrar demais o cabelo também proíbe que crianças sejam batizadas com nomes étnicos.

Para além da óbvia misoginia, sua morte intensificou também as tensões da xenofobia que transforma o Curdistão em um barril de pólvora. Foi ali que explodiram os primeiros protestos pelas mortes de Zhina, que acabaram se alastrando para as demais províncias.

Da mesma forma, a repressão do governo contra os dissidentes – brutal em todo o país – adquiria um aspecto ainda mais macabro em Sanandaj.

O cheiro de pólvora e borracha queimada nas ruas estranhamente vazias foi a primeira coisa que notei que me chamou a atenção. Mas o que me assustou mesmo foram as centenas de polícias do pelotão de choque que cercavam as esquinas do Bazaar todas as noites. Fortemente armados, do alto de seus coturnos e tanques de guerra, olhavam a rua com jeito de quem entendia que a regra contra os curdos é clara: atirar para matar.

Foi ali que entendi que as ruas em que eu passeava estavam em declarado estado de sítio.

Parei um táxi no hotel com o ímpeto de deixar a cidade 24 horas antes do programado. Minha vontade era sair de Sanandaj o mais rápido que conseguisse, deixar para trás a tensão palpável, encontrar um lugar onde eu me sentisse novamente em segurança. O taxista não sabia falar inglês, mas buscou sua esposa numa esquina e nos levou para tomar chá. Queria saber mais sobre o Brasil e nos mostrar fotos dos lugares mais bonitos do Irã. Esperaram até a hora do ônibus para ter certeza de que embarcaríamos em segurança. A vida cotidiana de Sanandaj seguia com seus momentos de descontração, apesar de tudo.

* Os nomes dos personagens que aparecem nesse texto foram ocultados e alguns detalhes alterados para preservar sua identidade

Uma senhorinha que me abraçou na vila curda de Palangan. Vítimas de preconceito por parte da própria população iraniana, os curdos têm fama de violentos e grosseiros, mas são, muitas vezes, mais receptivos e calorosos que os próprios persas.

Eu te ajudo a cair na estrada também!

Nos links abaixo há alguns serviços que eu utilizo e que me ajudam muito em minhas viagens.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade digital. Atuo como Publisher Independente desde 2010 e sou especialista em Escrita Criativa, Estratégia de Conteúdo Digital e Jornalismo de Viagem. Sou co-criadora do renomado blog de viagens 360meridianos, LinkedIn Top Voice 2024, e autora da newsletter Migraciones. Nas redes sociais, atendo sempre pela arroba @natybecattini.

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