“Ser uma flâneuse é não apenas vagar: é estar ciente das estruturas políticas que restringem esse vagar.”
Laura Elkin – Flâneuse
Há uma piada comum entre pessoas que já viajaram comigo, de que é impossível me acompanhar nos passeios. Quando minhas pernas pensam que estão caminhando, as das outras pessoas dizem que estou correndo.
Meu passo rápido é provavelmente uma materialização da minha ansiedade crônica. Essa pressa de chegar logo onde quero, típica de quem sempre viveu em cidade grande. Mas, apesar disso, caminhar sempre foi minha forma de locomoção favorita.
Vou andando a qualquer logo ali de mineiro
Viajando, sempre tive preferência pelas cidades, e andar por elas é minha forma natural de conhecê-las. O interior é melhor em guardar os segredos e preservar o passado, mas o que realmente me fascina a efervescência de possibilidades, as conexões improváveis e a pluralidade que só é possível em um lugar onde muitas vidas se cruzam.
Encontre o livro Flâneuse aqui
Quando ouvi falar pela primeira vez de “Flâneuse”, de Lauren Elkin, sabia que era um livro escrito pra mim. A obra, uma mistura de autobiografia e análise literária e histórica, é um convite para redescobrir a cidade sob a perspectiva da mulher que caminha — a flâneuse. O conceito, inspirado no flâneur francês, caracteriza o observador urbano, aquele que se perde em ruas e vielas, encontrando beleza nos detalhes do cotidiano.
Elkin nota que as representações dessa figura na literatura são essencialmente masculinas: o homem que caminha sem destino certo e carrega o direito inato de ir e vir sem que o notem ou o questionem.
A partir dessa reflexão, a autora reivindica o direito da mulher de ocupar a cidade, de explorá-la e de se apropriar de seus espaços. Nós, ela nota, estamos acostumadas a transitar pelas ruas como se as invadíssemos, sempre alerta, sempre cientes de que nossa presença pode ser considerada uma afronta. A nós, é negado o privilégio de ser invisíveis. Os espaços públicos não nos pertencem e, quando os ocupamos, não são poucos os que fazem questão de nos lembrar disso.
Cresci num amontoado de 3 milhões de pessoas cercado de morros. Tenho a impressão de Belo Horizonte vive presa em um paradoxo onde há mais subidas que descidas. Não importa onde você vá, terá que enfrentar uma caminhada ladeira acima.
Sempre atribuí a isso o fato de que caminho muito menos em BH que em outras cidades, mas minha teoria foi por terra quando passei uma temporada em Lisboa e galgava as ladeiras como quem conquista montanhas.
A questão, no entanto, tem muito menos a ver com topografia e mais com não me sentir convidada ao passeio: no bairro onde moro, é preciso enfrentar uma avenida repleta de oficinas mecânicas e lojas de automóveis para chegar em qualquer lugar. Evito caminhar pela Pedro II sempre que posso, desde de adolescente: antes mesmo que pudesse entender a raiz do meu incômodo, já reconhecia a avenida como um espaço masculino que o tempo todo me lembra do quão invasivo é, para mim, estar ali.
Há algo em comum entre caminhar em minha própria cidade e nas cidades que conheço quando viajo, no entanto: em todas elas, sou estrangeira.
Ser mulher na cidade, assim como ser mulher no mundo, é um equilíbrio constante entre o desejo de pertencer e a luta pelo reconhecimento desse direito. É aprender a caminhar entre a necessidade de ser vista como parte do universo urbano e a urgência de se proteger dele.
Se colocar nesse mundo, na própria cidade ou nas cidades dos outros, então, se torna um ato de resistência, uma afirmação de que, apesar das barreiras, somos capazes de encontrar nosso lugar nesse espaço tão masculino.
Ao longo da leitura, Elkin mescla suas próprias experiências e explorações com as de outras mulheres que se propuseram a descobrir e narrar a cidade com seus próprios corpos, buscando uma conexão com o espaço urbano e com elas mesmas.
Ela mostra, por exemplo, como as caminhadas ajudaram Virginia Woolf a alimentar sua imaginação e sua escrita, fazendo com a própria Londres se tornasse personagem de suas histórias. Em Veneza, conta como Sophie Calle seguiu um homem pelos becos, refletindo sobre a natureza da observação e a intimidade compartilhada com estranhos.
Já em Paris, a cidade favorita da autora, ela narra a história de George Sand, escritora francesa que desafiou as normas de gênero ao vestir-se como homem e adotar um nome masculino para vagar livremente pelas ruas. Usando a flânerie como uma forma de subverter as restrições sociais do século 19, ela conseguiu uma perspectiva da cidade negada para as mulheres de sua época.
E, assim, a leitura me transportou para as madrugadas em que eu preferia caminhar da Plaça Catalunya à Villa de Gracia, onde morava, com os fones no ouvido e um sentimento imenso de liberdade enquanto atravessava sem medo as ruelas vazias de Barcelona.
“Flâneuse” nos desafia a reivindicar nosso espaço, a reescrever a narrativa que foi imposta a nós, e a nos encontrar nas ruas, nas vielas e nos cafés. É um lembrete de que, mesmo em um mundo que insiste em nos dizer o contrário, temos o direito de ocupar, de explorar e de nos perder. É uma celebração da coragem de ser mulher na cidade, de abraçar a complexidade e a beleza que isso implica.
As ruas são palcos de descoberta e autodescoberta, espaços onde podemos desafiar convenções e reivindicar nossa liberdade. São lugares feitos de histórias e vivências que se cruzam e se entrelaçam, formando um mosaico inesgotável de experiências humanas.
No final das contas, a cidade pertence a todas nós, e é nosso direito desfrutar de sua beleza, seus problemas e das particularidades de cada uma delas. Ao fazê-lo, nos tornamos parte dessa intricada trama urbana, tecendo uma história que sempre foi nossa.
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