Douglas Adams uma vez disse que “odiava escrever, adorava ter escrito”. Para ele, criar era um processo dolorido, algo que não lhe acontecia com facilidade. Na oficina de escrita que, na época em que podíamos sair por aí, eu frequentava todas as quartas-feiras, dentro de um prédio boêmio do centro de Belo Horizonte, a professora uma vez disse que todo mundo que se expressa por meio da palavra escrita já tentou, algum dia, parar de escrever.
Não sei se o mesmo acontece com quem tem dentro de si outras artes, mas a vida seria, de fato, muito mais fácil se a constante urgência em desenhar letras num papel não pairasse sobre nós. Para quem nasce escritor, ignorar o chamado é ainda mais dolorido.
Houve uma época em que escrever era fácil, muito fácil. Já foi algo bastante natural, que eu fazia sem pensar muito e ficava bastante feliz com o resultado. Algumas crianças pintam, outras desenham, outras fazem experiências científicas com o que tem na cozinha. Eu escrevia histórias e confeccionava livros com capa de cartolina pra dar de presente pra quem eu gostava.
As aulas de redação no colégio eram um segundo recreio. Naquela época, era só colocar uma palavra atrás da outra e pronto. Não havia necessidade de aprovação, não havia o demônio desvairado da autocrítica pronto para devorar qualquer coisa que eu criasse, sequer havia ouvido falar de síndrome do impostor.
Em Wonderbook, um lindo manual de ficção imaginativa que acabei de ler esses dias, há uma entrevista com George R. R. Martin na qual ele diz que, quando era um jovem escritor, costumava escrever diversos começos, cenas, capítulos inteiros que acabavam para sempre na gaveta. Ele culpa a inexperiência e diz que acredita ser algo pelo qual a maior parte dos autores acaba passando em determinado momento de sua vida.
Imagens do guia Wonderbook.
Saber que um escritor best-seller capaz de histórias tão complexas já sofreu dos mesmos problemas que eu foi reconfortante, quase como se fizéssemos parte do mesmo clube. Ainda que esse escritor seja conhecido por sua suposta tendência a andar dentro de bolas infláveis gigantes em seu jardim enquanto deveria estar escrevendo “The Winds of Winter” (eu te entendo, George).
Passei a olhar com mais carinho para as vinte páginas que há semanas eu escondi em uma pasta no Drive depois de passar do completo apaixonamento ao ranço absoluto pela história, do tipo que me traz repulsa só de abrir o arquivo. Não é um adeus, é um até logo. Fui trabalhar em outros projetos, de escrita e outros assuntos criativos.
Tem horas que a gente precisa deixar o texto decantar e perder qualquer resquício do cordão umbilical que o liga a nós. Se reconhecer em um texto pode matar qualquer faísca criativa. O processo exige distância para que, daqui há algumas semanas ou meses, a gente possa encontrar outra vez o arquivo e dizer para si mesmo que aquelas palavras eram boas e que a história faz sentido, e se perguntar o porquê de tê-la deixado ali sozinha por tanto tempo em primeiro lugar. “Há o tempo de escrever e o tempo de não escrever”, me disse também minha professora. O tempo nos faz ler nossas próprias palavras com o distanciamento de uma outra pessoa, e isso é excelente.
Novidades empolgantes
- Um conto que eu já mandei aqui para vocês em primeira mão foi selecionado para a terceira temporada da Faísca, revista digital de fantasia e ficção científica. Acho que isso me torna uma escritora publicada :D. Os contos são enviados por email e, para receber, você pode se cadastrar por aqui.
- Tenho me esforçado para produzir conteúdo para o instagram de forma mais consistente e com mais qualidade. Se você curte meu trabalho e usa a rede, vamos ser amigos por lá também! Nessa lógica meio louca que o Zuckeberg tem de sabotar as próprias redes, é cada vez mais difícil conseguir engajamento, mas esses números ainda são muito importantes para nós, pequenos produtores de conteúdo digital. Você me encontra aqui.
Também dei uns pitacos aqui
- Você sabia que Charles Darwin esteve no Brasil antes de desembarcar em Galápagos? Ele passou aqui alguns meses e, embora tenha amado Salvador e a natureza tropica, não saiu com a melhor impressão do Rio de Janeiro. Eu contei essa história lá no 360meridianos.
- Itaipú foi uma das maiores obras de engenharia nacionais e hoje o país depende da energia gerada pela usina. Sua construção, no entanto, teve um preço muito alto. Perdemos pra sempre as Sete Quedas, a maior cachoeira do mundo em volume d’água. Nesse texto eu conto um pouco dessa história e discuto se esse modelo de progresso tem lugar no nosso futuro.
- Como um dos materiais que fazem parte da entrega do Clube Grandes Viajantes, eu falei sobre a trajetória de Júlia Lopes de Almeida, uma das maiores escritoras brasileiras do início do século 20, mas que com o tempo acabou esquecida pelo cânone. Julia era de filha de portugueses e visitou a Europa diversas vezes, mas ela fazia questão mesmo era de escrever e mostrar para as pessoas a grandeza do Brasil.
Livros da Quarentena
Esses são alguns dos melhores livros que eu li em 2020 até agora:
- Do Amor e Outros Demônios – Com a mágica e a poesia que são sua marca registrada, Gabriel García Márques conta a história de Sierva Maria, uma marquesinha de família omissa e decadente da Colômbia já nos finais do período colonial. Incompreendida, a menina acaba internada em um convento por suspeita de raiva e de possessão demoníaca. O livro trata de temas como a religião, o pecado e o amor.
- Na Pior em Paris e em Londres – George Orwell conta, de forma bem humorada, da época em que viveu sem um tostão no bolso no Quartier Latin, na época uma favela francesa, enquanto tentava conciliar seu sonho de se tornar escritor com seu emprego de lavador de pratos. De volta a Londres, ele viveu em um abrigo para moradores de rua e passava os dias perambulando pela cidade. O livro ajuda a entender o contexto das cidades europeias em meados do século passado e, ao mesmo tempo, nos leva a refletir sore a pobreza.
- Torto Arado – Disparado o meu favorito dessa lista, o romance do escritor baiano Itamar Vieira Junior conta a história das irmãs Bibiana e Belonísia, que acabam ligadas de forma permanente depois que sofrem um acidente na infância. O pano de fundo é o dia a dia na fazenda Água Negra, onde elas nasceram e vivem em regime de servidão. À sua maneira, cada uma luta pela emancipação e fala das violências, da precariedade do trabalho, da questão da terra, da fome e da seca.
- Kindred – Dana, uma jovem negra na California dos anos 1970, é transportada para o sul escravagista no século 18. Lá, ela precisa se adaptar para sobreviver às violências impostas a ela e às outras pessoas escravizadas na fazenda. Esse é um daqueles livros que a gente só para de ler quando termina, mas não é uma leitura fácil. É um livro repleto de tensão e que levanta inúmeras questões sobre relações raciais e de poder que perduram até hoje.
- Quatro Soldados – Fantasia ambientada no Brasil Colonial, de Samir Machado de Machado, o livro acompanha as jornadas de quatro soldados pelo sul do país em meio às missões jesuítas e perseguições da Coroa Portuguesa. No meio do caminho, se deparam com criaturas do folclore nacional.
Eu te ajudo a cair na estrada também!Nos links abaixo há alguns serviços que eu utilizo e que me ajudam muito em minhas viagens. |