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Os pedacinhos que colhi por aí

Conheci Andressa aos sete anos, no primeiro dia de aula da primeira série, e acredito que essa tenha sido a primeira vez que experimentei aquele sentimento de admiração profunda misturado com um ciúme que eu não conseguia, ao certo, identificar. Destestei-a imediatamente.  

Andressa era tudo aquilo que eu acreditava não ser. Pra começar, era ruiva, e isso bastava para que ela chamasse a atenção por onde quer que passasse. Tinha um cabelo enorme, liso e de um vermelho brilhante que reluzia ao sol, o rosto cheio de sardinhas e uma personalidade irritantemente cativante que a tornava o centro das atenções o tempo inteiro. 

Naquela época, eu era tomada por um sentimento solitário e devastador de ser apenas comum. Isso já vinha do ano anterior, quando me mudei da minha escolinha para o colégio e me tornei apenas mais uma entre muitas crianças, mas se acentuou com a presença de Andressa. 

Quando olhava à minha volta, via dezenas de rostos que eu julgava exatamente iguais ao meu: o cabelo preto e volumoso, os olhos castanhos, a pele levemente bronzeada que herdei da mistura tão brasileira de etnias de meus antepassados. Tudo isso, somada a minha personalidade tímida e reservada, fazia com que eu me sentisse uma sombra na multidão. Alguém que andava agarrada às paredes e não tinha nada de especial para ser notada.  

O sentimento de ser invisível e sem graça me consumia por dentro, a ponto de eu me surpreender quando percebia que os professores sabiam meu nome. Sentia como se eu fosse uma personagem secundária em um enredo que não me pertencia, e que seria sempre coadjuvante em um mundo onde crianças como Andressa eram protagonistas. 

Por isso, foi uma surpresa para mim quando o inevitável aconteceu e Andressa e eu nos tornamos melhores amigas. Um dia, a tia Adriana precisou sair da sala e deixou Andressa responsável por anotar os nomes de quem se comportasse mal. Tendo o poder da caneta na mão, ela mesma começou a criar a balbúrdia entre os colegas. Corria atrás dos meninos, subia nas cadeiras, escrevia no quadro negro. Anotou o nome de todos os que se juntaram à zona que ela própria criara e, quando Tia Adriana voltou à classe, entregou-lhe a lista, obediente. 

“E o seu nome? Você anotou?”, perguntei, no tom mais desafiador que consegui encontrar para dirigir-me a ela quando passou por mim no caminho de volta a sua carteira. “O meu não, eu que estava fazendo a lista”, respondeu, como se as regras fossem óbvias e, minha pergunta, descabida. Meu estômago se contorceu ao som daquela injustiça e, ao mesmo tempo, senti uma profunda admiração por sua coragem, como se ela soubesse melhor as regras de um jogo que eu, naquela época e ainda hoje, tentava compreender.  

Pelo resto do ano letivo, fomos inseparáveis. 


 ***


Andressa saiu do colégio no ano seguinte e eu nunca mais a vi. Não sei nada sobre sua trajetória e sobre a pessoa que se tornou passado todos esses anos. As lembranças que tenho dela hoje são bastante turvas, quase como se ela tivesse sido apenas uma amiga imaginária ou uma projeção do meu inconsciente sobre um ideal de menina. 

Me lembro dos cabelos brilhantes e das sardas, de dividir o lanche no recreio quando nos sentávamos juntas com um grupo de amigas que construímos ao nosso redor – algumas delas chegaram a me acompanhar por muito anos na trajetória escolar. Lembro-me de confessar pra ela minha primeira paixonite, das nossas tentativas frustradas de fazer estrela e abertura e de algumas incursões clandestinas a espaços proibidos do colégio. Não muito mais que isso. 

Nos mais de vinte anos que nos separam, no entanto, experimentei muitas vezes esse sentimento de fascínio sobre outras mulheres que conheci. Hoje, mergulhada na relação entre Lila e Lenu, nos romances de Elena Ferrante, o magnetismo que uma mulher exerce sobre outra se torna muito mais óbvia para mim. 

Ser mulher é, ainda, um mistério. “Há muitas coisas de nós que não foram contadas até o fundo ou que simplesmente não foram contadas”, afirma a própria Elena Ferrante em uma das raras entrevistas que concedeu ao El País. E, como ninguém nos contou, precisamos descobrir sozinhas em meio ao mundo que se transforma e transforma com eles os modelos e papéis do feminino. 

No mesmo texto, a escritora diz que sua geração foi a primeira a entender que não era preciso ser homem para escrever grandes romances. Talvez também tenha sido a primeira a descobrir que não é preciso ser homem para construir edifícios, produzir obras de arte, jogar o jogo político, fazer ciência. No entanto, embora já não nos consideremos mais acessórias, às vezes ainda temos dificuldade para nos ver como protagonistas. 

As limitações de classe e gênero marcaram as vidas de Lila e Lenu de formas distintas, mas para ambas se apresentam como muros a serem ultrapassados a fim de garantir sobrevivência, dignidade, liberdade. Ao longo dos anos, a amizade que mantinham as instigava a superar os obstáculos que teimavam em aparecer, fazendo-as encontrar motivação na rivalidade nem sempre saudável, na admiração mútua e nas características e qualidades que absorviam uma da outra. Foi a rebeldia de Lila, Lenu admite, que a fez perceber que ela não precisava se conformar com as fronteiras – físicas e sociais – do bairro periférico em que cresceu.

Mas será que essa dinâmica de brincar ora de espelho, ora de rival não é comum em todas nós? E não me refiro àquela velha competição feminina inventada por sei lá quem para nos manter desunidas e obedientes, fazendo parecer que estamos em um eterno concurso de beleza desde o momento em que nascemos – e que é, acima de tudo, uma grande mentira. Mas a reconhecer a grandeza que há em outra mulher e se esforçar para alcançá-la, para ser um pouquinho mais como ela porque você a admira. A amar nossas amigas, professoras, mães, tias e irmãs com todos os defeitos e qualidades, com todos os sucessos e fracassos, porque reconhecemos nelas a resistência e a luta que nos é comum, porque somos parte desse mesmo mundo que nos limita e joga nos nossos ombros uma carga que não é nossa pelo simples fato de nascer mulher.

Será que eu teria tantos livros na estante não fossem as visitas à biblioteca acompanhada de uma amiga com quem eu comparava as fichas de empréstimo a cada semestre? 

Teria feito a mesma escolha na graduação não fosse às professoras de história e português que me incentivaram a escrever? 

Teria sido aprovada no Vestibular sem a ajuda daquela amiga que quase me forçava a estudar física a matemática?

Estaria trabalhando com o que trabalho sem o empurrãozinho daquela amiga que me levou à reunião do intercâmbio que foi o começo do 360meridianos?

É sempre difícil imaginar o que teria sido quando falamos de hipóteses, mas olhando para trás consigo perceber a importância que todas elas tiveram na minha trajetória. Assim como Lila e Lenu, a mulher que eu sou hoje é a soma dos pedacinhos de tantas outras mulheres incríveis que encontrei por aí. E talvez, com um pouco de sorte, eu tenha deixado nelas pedacinhos meus também. 

 

Eu te ajudo a cair na estrada também!

Nos links abaixo há alguns serviços que eu utilizo e que me ajudam muito em minhas viagens.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade digital. Atuo como Publisher Independente desde 2010 e sou especialista em Escrita Criativa, Estratégia de Conteúdo Digital e Jornalismo de Viagem. Sou co-criadora do renomado blog de viagens 360meridianos, LinkedIn Top Voice 2024, e autora da newsletter Migraciones. Nas redes sociais, atendo sempre pela arroba @natybecattini.

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