Mal passei as mochilas do porta-mala do carro para a calçada, o motorista do Uber alertou: cuidado aqui, moça!
Aquele foi o primeiro de muitos avisos que recebi. Aos poucos, colecionei uma pequena lista de recomendações básicas de sobrevivência para o tempo em que passaria vivendo no centro de São Paulo.
Não tirar o celular da bolsa, não voltar à pé à noite, não dar bobeira na esquina, esperar o carro chegar para sair do apartamento, ter cuidado com os moleques de bicicleta, que se vestem como entregadores de iFood e arrancam o telefone das mãos dos distraídos.
Localizado em frente a uma praça na Avenida São João, o bonito condomínio de duas torres que escolhi para morar se autointitulava um urban resort. O nome não poderia ser mais adequado: só piscina, tinha duas. Uma delas, de borda infinita, ficava na cobertura e, ao lado da sauna e da academia, proporcionava uma bela vista para a exótica selva de pedra lá embaixo.
Havia mais: espaço para pet care, parquinho, quadra esportiva, feira de orgânicos, espaço gourmet, praça com lareira, sala de cinema…
Da janela do meu apartamento no sexto andar ou da piscina do térreo, tudo que eu via era um pedaço de céu emoldurado por medianeras cinzentas que formavam um muro entre a cidade e eu. Do lado de dentro, comodidades de luxo feitas sob medida para nos ajudar a adiar o inevitável: encarar a realidade lá fora. Um oásis construído em meio a uma terra devastada.
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O Lado de Lá
Mike Pondsmith, criador do jogo Cyberpunk 2077, considerou São Paulo a cidade mais parecida com o futuro distópico de seus videogames.
E romper a segurança camuflada do condomínio era mesmo uma aventura gamificada com desfechos imprevisíveis. Situado a apenas dois quarteirões de onde tranquilamente tomávamos sol aos domingos, o cruzamento da Avenida São João com a Rua Aurora é considerado o mais perigoso da cidade. Título alcançado devido ao alto número de assaltos registrados ali.
Em um final de semana que eu fugi rapidamente para BH, uma menina morreu na rua de trás, acertada por um tiro da polícia que tentava protegê-la de um assalto à mão armada. Num sábado diferente, me vi em meio a uma operação policial cinematográfica envolvendo muitas viaturas, helicópteros e uma agência do Bradesco. Não fiquei para descobri o que tinha acontecido.
Considerando tudo isso, talvez seja positivo o fato de que apenas uma vez eu achei que seria roubada. Fui cercada por dois meninos de bicicleta bem no meio da pracinha em frente de casa enquanto tentava encontrar meu Uber, mas eles foram embora quando não encontraram nada visível que pudessem arrancar da minha mão. Parece que aprendi com os conselhos, no fim das contas.
A sensação de insegurança, no entanto, é apenas uma faceta da falta de civilidade com a qual, aos poucos, somos forçados a nos acostumar. Como os paulistanos, a cidade me anestesiou, e as cenas que no início me chocavam foram se tornando parte da paisagem, uma cicatriz feia que aos poucos para de incomodar.
Foi assim que deixei de notar o cheiro de mijo e cocô de cada espaço público transformado em banheiro; o cara fumando crack em plena luz do dia na esquina de casa; o lixo revirado no meio da rua por gente procurando algo para comer; aquela pessoa que talvez estivesse morta debaixo da marquise. No início, me incomodava a grande quantidade de pedintes, e eu passei quase um dia pensando na menina que me pediu fraldas descartáveis e eu, por hábito ou preguiça, neguei. Ao sair da cidade, já havia incorporado o procedimento padrão de sequer ouvir suas demandas, arrancando assim, também sua humanidade.
Observar em mim o processo de naturalizar o absurdo foi ainda mais assustador que própria a distopia.
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