Encontrei uma vez, em Barcelona, um amigo brasileiro que vive em Buenos Aires. Chef de cozinha e dono de um hostel, ele gostou de ver a parte histórica da cidade e de sair para as baladas intermináveis, mas o que mais o deixou saltitante foi a nossa visita ao supermercado. A cada corredor, uma exclamação diferente:
“Olha o preço disso!”
“Meu deus, como as coisas são baratas”
“Em Buenos Aires, custaria o triplo”. E parava, fazia uns rápidos cálculos mentais antes de acrescentar: “Não, o quádruplo! Como eu queria poder levar tudo isso na minha mala!”. Argumentei que ir ao supermercado na Espanha era mais barato que no Brasil também. “Estive no Brasil antes de vir para cá. Você não tem noção. Buenos Aires conseguiu superar”.
“Ah, tá tudo muito caro”. Já faz muitos anos que essa é a resposta mais corrente que obtenho quando pergunto para os velhos conhecidos de Buenos Aires sobre como anda a vida. E a reclamação é muito mais que conversa de comadres na fila do caixa. A escalada galopante de preços no país é, para o cidadão comum, o principal reflexo prático de uma crise econômica que se arrasta há quase duas décadas, mas que teve seu auge em janeiro de 2001.
“A crise é nosso estado natural. Já nos acostumamos a viver com ela. Há momentos piores, outros melhores, mas já nos esquecemos do que é estar em um país que vai bem de economia.” Norma, uma mãe de três filhos na casa dos 40, contou durante um assado despretensioso em sua casa. O tema da conversa era a eleição de 2015, que ainda estava por vir. Ela era do time que acreditava que nenhum dos candidatos poderia dar jeito no estado atual das coisas. Com uma renda mensal menor que um salário mínimo – que na Argentina é de 8.000 pesos, o equivalente hoje a R$ 1.450 -, ela era uma das que sempre reclamavam dos preços no supermercado: “Dios, como están caras las cosas!”.
Quando, ao final daquele ano, Macri foi eleito, uma injeção de otimismo tomou o mercado e uma parte da população: “Não é questão de concordar ou não concordar com um governo mais liberal. Isso é o que esse país precisa agora. Não temos opção”, argumentou Luciano, um jovem estudante que pela primeira vez votou nas presidenciais.
O primeiro ano do governo, no entanto, não fez jus às expectativas daqueles que votaram nele esperando recuperação econômica. Em 2016, o país registrou uma inflação de 41%, a maior em 25 anos e muito acima dos 25% prometidos por ele logo após chegar ao poder. Os alimentos tiveram alta de 33%, as contas básicas de 77% e o imposto sobre o aluguel 30%. O índice geral é o segundo maior da América do Sul, só perdendo para a Venezuela, que há anos enfrenta uma grave crise política. O desemprego e a pobreza também subiram e fecharam o ano com taxas de 9.3% e 32.2%, respectivamente.
O problema não atinge apenas os setores básicos. Muitos argentinos consideram que vale a pena cruzar a fronteira do Chile apenas para fazer compras no país vizinho. E não é que o Chile tenha preços a la Miami. É que roupas e eletrônicos são vendidos a valores impraticáveis nas lojas de Buenos Aires.
Em 2017, no entanto, o país começou a mostrar sinais de que uma recuperação era possível, entre eles um forte avanço no setor agropecuário. Mas apesar do governo ter anunciado, em fevereiro deste ano, que a Argentina havia finalmente superado a recessão, a notícia foi recebida com descrença e indignação pela população e por parte da mídia local.
Os indicadores econômicos dos meses que se seguiram mostraram que a desconfiança não era injustificada. Redução no consumo nos supermercados, uma inflação que segue alta – a previsão é fechar o ano entre 20% e 24% -, cortes de luz frequentes, a precarização do ensino público, um grande aumento nas tarifas básicas de luz, eletricidade e gás seguem irritando boa parte dos argentinos. Em especial aqueles que trabalham em setores que não contam com sindicatos fortes para garantir aumentos que acompanhem os preços, além de outros 35% que atuam no mercado informal.
Na minha última visita à cidade, em junho de 2017, o desânimo e a indignação diante do cenário não acompanhavam o otimismo do governo. “Quando se sai da recessão, não é tão fácil as pessoas sentirem isso”, resume Guillermo Nielsen, um dos principais economistas da oposição peronista, para o El País. E ele tem razão. Enquanto os discursos e índices políticos não se refletirem nas mesas e na qualidade de vida das pessoas, a crise vai continuar a ser real para elas.
Duas décadas de uma crise eterna
Pessoas correndo para estocar pão. Essa foi a cena que mais me impressionou ao assistir ao noticiário sobre o auge da crise na Argentina. Santiago, guia de um agradável passeio de bicicleta pelas ruas de Buenos Aires, no entanto, tem lembranças bem mais fortes daqueles tempos. Em especial do dia 19 de dezembro de 2001, que ainda é muito vivo na memória dos argentinos. Depois que, no início daquele mês, o FMI negou um pacote de ajuda ao país, o medo e a insegurança estouraram nas casas da população. A situação teve seu ápice naquele dia, quando o desabastecimento provocou uma onda de saques nos supermercados e pequenos comércios locais. Mas essa foi apenas a ponta do iceberg de uma situação que se arrastava há meses.
Depois de passar por um período de recessão e hiperinflação na década de 1980, uma das medidas do governo do então presidente Carlos Menem – que governou o país por uma década – e do ministro da economia Domingo Cavallo para lidar com a crise foi equiparar o peso com o dólar. Funcionou por cinco anos. O país cresceu, atraiu investidores. “Foi uma linda fantasia a que vivemos. Ficamos ricos. Viajávamos ao Brasil e achávamos tudo barato. Nos esbaldávamos nas caipirinhas”, conta Santiago. “Mas era tudo uma doce mentira”.
O modelo começou a ruir em meados da década de 1990, com a crise na Ásia. O golpe de misericórdia foi a desvalorização do Real, em 1999. Como país manteve a equiparação do dólar com peso nesse cenário, os produtos de exportação argentinos se tornaram muito caros. Além disso, era muito mais vantajoso importar que produzir no país. O modelo acabou destruindo a indústria local, que jamais se recuperou.
Em 2001, mesmo com a crescente fuga de dólares e as ruas em colapso, o então presidente Fernando de la Rúa e o ministro Domingo Cavallo – que havia voltado ao cargo em seu mandato – se recusaram a tirar a paridade da moeda em seus pacotes econômicos. O fim da medida só veio no ano seguinte, com a deposição de la Rúa, que foi substituído por seu oponente Eduardo Duhalde.
Mas a desvalorização do peso cobraria seu preço. Entre fevereiro e março de 2002, a moeda perdeu 70% de seu valor. “Imagine você se, em poucas semanas, tudo o que você tem na vida desvalorizasse 70%. Eram dias terríveis, ninguém tinha esperança no futuro. Parecia que a Argentina ia acabar”. Não acabou. Entre trancos e barrancos, o país segue. Mas as lembranças e consequências daqueles anos ainda estão muito vivas. Sobre o presidente Carlos Menem, que muitos culpam pela crise, ele afirma: “A ele chamamos Lord Voldemort, porque acreditamos que dizer seu nome traz má sorte”.
A brincadeira tem seu fundo de verdade. Túlio Bragança, brasileiro que morou na Argentina durante 11 anos e comanda o blog Aires Buenos, conta da grande superstição que existe em torno do ex-presidente. “Falar o nome dele equivale a ver um gato preto. O pessoal inventa altos nomes para não ter que dizer Menem. Uma vez, num jogo do Brasil na Copa do Mundo de 2014, o pessoal do meu escritório foi assistir com uma máscara do Menem para ver se azarava a seleção”. Vale dizer que o Brasil realmente acabou tomando um gol naquela partida. Pelo sim, pelo não, melhor evitar.
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