Isfahan é a cidade mais bonita do Irã. Com boulevards amplos e arborizados, praças e parques bem cuidados, os espaços públicos te convidam a ocupá-los. Um exemplo de urbanismo que só encontrei na Europa e que deixaria muita metrópole brasileira com vergonha.
Caminhar por ali é agradável e seguro e, nas tardes, pessoas de todas as idades ocupam os bancos e cafés dispostos ao longo das amplas calçadas. Grupos de garotas adolescentes usando uniformes que incluem um hijab da cor da escola; casais jovens bebericando um chá; velhas senhoras que se sentam na grama para discutir versículos do Alcorão.
Acho que passei tempo demais em Isfahan e acabei me entediando. Por algum motivo que agora não me recordo, reservei seis dias para uma cidade que se esgota em dois e, como o governo estava bloqueando o sinal internet para conter os protestos, tentei fazer como os iranianos e gastar as horas sentada em um dos cafés da Chahar Bagh Boulevard, uma avenida histórica inspirada na Champs Elisées e que é o centro da vida social da cidade.
Mas, sempre que eu pedia um chá, só conseguia comentar:
“Imagina, hein? Nesse calor, uma cervejinha…”
Açúcar, o álcool islâmico?
Uma coisa que notei nas minhas peregrinações pelo mundo islâmico é que, mesmo nos países onde a venda de bebidas alcóolicas é permitida, o açúcar acaba assumindo o papel de droga social.
No Irã ou na Tunísia, Turquia e Azerbaijão, não faltam vitrines repletas de bolos, tortas e delights, e as pessoas conseguem passar horas conversando em torno de uma xícara de chá e uma sobremesa, em geral, doce demais para o meu paladar.
Sendo de uma cultura em que o consumo de álcool é glorificado e na qual mesmo as socializações mais formais são sempre acompanhadas de uma taça, eu ainda acho curiosa a habilidade abstêmia de fazer o assunto render tanto sem o uso de qualquer lubrificante social. Afinal, um pico de açúcar não necessariamente ajuda a tornar conversas mais fluidas e a destruir as paredes da inibição.
Uma noite, me sentei em um rooftop numa casa histórica de Yazd e pedi uma coca zero e uma pizza. O pedido chegou rápido demais e ainda era cedo demais para voltar pro hotel e ficar olhando pro teto até a hora de dormir. “E agora, o que?”, perguntei pro Jeff. “O que as pessoas fazem quando não bebem?”, ele devolveu.
Quando você toma uma latinha inteira de coca-cola, você não quer pedir a segunda, ao contrário da cerveja.
Na mesa ao lado, um grupo de uns 15 jovens em idade universitária celebrava alguma coisa e, como qualquer grupo de universitários em qualquer lugar do mundo, faziam um algazarra. A diferença é que na mesa havia bolo e água com gás. Talvez seja tudo uma questão de costume.
Álcool alternativo e consumo clandestino no Irã
Para acompanhar a pizza, Jeff pediu uma cerveja.
É muito comum, no Irã hipster das grandes cidades, encontrar cerveja sem álcool nos cafés e restaurantes descolados, talvez numa tentativa de simular uma experiência ocidentalizada.
O drink, no entanto, não me conquistou. Em vez da Heineken 0% (que engana muito bem, diga-se de passagem), as cervejas ali são doces e gaseificadas, com sabor de mel, limão ou gengibre. Não passam de refrigerantes com rótulo moderninho.
Mas isso é o que eles tomam à luz do dia.
Quando morei na Índia, meu amigo iraniano me disse que um tio seu produzia bebidas alcóolicas de forma clandestina no porão: “Ele sempre leva quando fazemos festa em casa”. “
E o que acontece se a polícia descobre?”, perguntei.
“Ele vai preso”.
A prisão é só uma das punições possíveis para quem é pego consumindo bebidas alcóolicas no Irã. Multas, chicotadas e até mesmo a pena de morte em casos graves também fazem parte do cardápio.
Apesar disso, uma pesquisa realizada pelo instituto Iran Open Data em 2021 constatou que metade dos iranianos adultos consomem álcool de maneira regular. Em 2016, de acordo com a OMS, o iraniano ingeriu, em média 28,4 litros de álcool, só ficando atrás do Afeganistão, que estava em guerra, e da Tunísia, onde a venda de álcool é legal, entre os países do Oriente Médio e Norte da África.
Os dados contrastam com as estatísticas oficiais do governo, que afirma que 96% da população jamais cometeu esse haram.
De onde vem tanto Goró?
Há 3.500 anos, em um lugar entre os Mares Iranianos (Golfo Pérsico e Mar Cáspio) e ao redor das Montanhas Zagros, homens e mulheres arianos descobriram uma fórmula que criou felicidade eterna pela primeira vez na humanidade, a qual chamamos de CERVEJA. Hoje, com o copo em mãos, bebemos em memória aos primeiros cervejeiros persas.
O trecho acima foi retirado do site da Perseas, que afirma ser a primeira cervejaria persa do mundo. Apesar de ter se instalado em local seguro (a sede da cervejaria é em Tucson, no Arizona) os fundadores se orgulham de suas raízes e ressaltam a importância do consumo de bebidas alcóolicas para a cultura persa.
“Nosso logotipo combina o leão e o sol, símbolos persa presentes em todas as dinastias da história. Nosso nome é uma combinação da palavra Parsi, o idioma do Irã, e Seas, que representam o Mar Cáspio e o Golfo Pérsico”, dizem em outra parte do site.
Antes de serem conquistados pelos árabes e adotarem o Islã, no século 7, os povos que habitavam o atual Irã tinham uma longa história com o álcool e referências a esse consumo estão por todas as partes nos poemas e literatura persa.
Além das evidências arqueológicas de que os persas produziam e consumiam cerveja desde a antiguidade, a região de Shiraz se popularizou na produção de uvas e vinho, e as bebidas feitas ali eram muito valorizadas pela nobreza persa e frequentemente usadas em cerimônias religiosas.
Com a instalação da República Islâmica, em 1979, a produção e o consumo de álcool passaram a ser proibidos, mas, como vimos, não foram erradicados.
De acordo com estatísticas de 2011, um equivalente a US$ 730 milhões em bebidas alcoólicas são contrabandeados para o Irã todos os anos. 80% dessa carga chega pela fronteira com o Curdistão Iraquiano, e só um quarto dela é apreendida pela polícia.
Mas, assim como o tio do meu amigo, a maior parte das pessoas acaba bebendo álcool feito em casa. Entre aqueles que afirmaram fazer uso frequente, 52% disse comprar bebidas caseiras, 28% são adeptos do DYI e apenas 20% só ingere bebidas vendidas em latas ou long necks.
E isso leva a um outro problema: esse tipo de bebida pode causar sérios problemas de saúde, incluindo falência dos rins e a perda permanente da visão.
Em 2019, 627 pessoas perderam a vida em decorrência do consumo de álcool adulterado no país. E, em maio do ano passado, 10 pessoas morreram e 75 foram hospitalizadas por intoxicação alcóolica na mesma semana, na cidade de Bandar Abbas.
No Irã, um frango teriyaki não é o que você pensa
Embora também seja proibido, o consumo de cannabis no Irã parece ser muito mais tolerado pelo governo que o álcool, e as leis que regulam o tema mudaram muito pouco com a Revolução.
A maconha é amplamente encontrada na região e seu cultivo não chega a ser crime, desde que provado que a plantação não tem fins narcóticos. Para isso, é preciso que a variedade tenha baixo teor de THC, como o cânhamo. Ser pego com pequenas quantidades da substância também não chega a colocar ninguém em maus lençóis.
Talvez por essa tolerância, de vez em quando dava para sentir o cheiro peculiar da planta em combustão pelas ruas das principais cidades do Irã. Um dia, voltando de uma vivência com as tribos nômades das montanhas do Zagros, o aroma invadiu nosso jeep. Bahman, nosso guia, abriu a janela e gritou algo em farsi para o carro ao lado.
“Eu disse pra ele que eu queria um pouco”, explicou.
“É comum fumar maconha por aqui?”, perguntei.
Ele confirmou.
“Álcool também. A maioria das pessoas bebe em casa…”.
Em outra excursão, dessa vez para o deserto de Varzeneh, acabamos confrontados com outra substância amplamente utilizada por ali. Ao cruzar os portões de uma das principais salinas do país e aceitar uma xícara de chá preto oferecida pelo segurança do lugar, o guia soltou:
“Ele não tem nada pra fazer. Por isso usa ópio o dia inteiro. É um teriyaki.”
O termo é uma forma pejorativa de se referir aos usuários da substância que, assim como a cannabis, tem uma longa história com as montanhas iranianas. Com cerca de 2 milhões de adictos, o país sofre com a segunda posição em dependência química por opioides no mundo, atrás apenas do Afeganistão; e tem a maior incidência per capta.
Apesar dos óbvios problemas sociais causados pelos opioides, seu consumo também é mais tolerado pelo governo que o álcool: há distribuição de seringas para evitar contaminação por HIV e tratamentos de substituição por metadona dentro e fora das prisões. Existe, inclusive, uma discussão avançada no Irã pela descriminalização da cannabis e da papoula como parte de uma abordagem menos punitivista com relação ao uso de drogas.
Ainda assim, logo descobrimos que teriyaki não é uma palavra para ser dita em voz alta pelos mercados do país. Ao contar a história a conhecidos em Shiraz, eles riram e disseram pra gente falar baixo: “O que? A gente poderia estar falando de comida japonesa”.
A reação de nossos amigos indica a marginalização sofrida pelos usuários, em geral pessoas mais velhas e pobres, moradores de zonas rurais.
Quando voltamos do passeio no lago de sal, o vigia preparava outro chá, dessa vez de ópio.
“Vocês querem um pouco?”, ele perguntou.
Agradecemos educadamente antes de entrar no carro. “Não vai dar. Temos uma duna pra escalar agora, mas obrigado”.
Para a hospitalidade iraniana, um desejo é uma ordem
“Mas o que vocês gostam de fazer no país de vocês?”, perguntou o senhor de meia idade que puxou assunto com a gente durante o café da manhã, no hotel de Shiraz. Ele estava na companhia da mulher e de dois filhos adolescentes.
“O Brasil é muito alegre! A gente gosta de sair com amigos, futebol, ir à praia, carnaval, samba, ir pro bar…”. Depois de quatro meses longe de casas, usamos o pacote cultural que faz a alegria dos gringos.
“Bar?”, ele perguntou, e nós nos entreolhamos, com medo de termos ofendido um muçulmano mais estrito. “Vocês costumam beber no Brasil?”
“Sim, com frequência”, respondi.
Ele se levantou da mesa, e com seu jeito exageradamente formal, disse: “Tenham um bom dia, eu vejo vocês mais tarde”. Para um brasileiro, essa é uma promessa vazia. Por isso, nos surpreendemos quando encontramos o mesmo senhor parado em frente à entrada do hotel, usando uma jaqueta marrom, um dos braços escondido dentro dela, andando inquieto de um lado para o outro.
“Aí estão vocês, eu estava esperando! Venham!”, ele disse, e apontou para uma entrada na lateral do hotel.
O beco pelo qual passamos terminava em um pátio que era cercado por um conjunto de casas, como num condomínio. “Por aqui, eu aluguei aquela casa”. Depois de subir um pequeno lance de escadas, entramos em uma das casas e ele trancou a porta. Depois, foi até a janela e fechou as cortinas. Só então ele tirou a garrafa que escondia debaixo da jaqueta.
“Consegui de um amigo que fabrica na casa dele”, ele disse, sorridente.
A embalagem era de uma daquelas cervejas sem álcool vendidas nos bares descolados do país, mas a tampinha deformada indicava que já havia sido aberta antes e fechada outra vez. Ele distribuiu o conteúdo em três copos e chamou seu filho mais novo, de doze anos, para ajudar na conversa. O garoto, que era gamer e streamer, falava o melhor inglês da família.
A bebida tinha o mesmo gosto da cerveja-refrigerante de limão, com algum tipo de álcool caseiro adicionado. Talvez fosse vodca. Eu não sabia, mas dá pra fazer vodca em casa com um punhado de batatas e uma panela de pressão.
Conversamos sobre nossas culturas até terminar a garrafa. Mostramos vídeos do carnaval no Youtube e o clipe que o Michael Jackson gravou no Pelourinho. Em algum momento, ele brigou pelo telefone com o amigo da cerveja, que tinha ficado de aparecer ali levando uma garrafa de Heineken contrabandeada, mas acabou cancelando de última hora.
Eu não sei se a bebida bateu errado ou se ele só era um fã muito apaixonado do Michael Jackson, mas fomos embora quando ele começou a chorar ouvindo Earth Song.
Esse texto foi publicado originalmente na minha newsletter Migraciones. Para receber mais crônicas como essa, inscreva-se no formulário abaixo:
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