Em uma das paradas que fiz pela Rota 66, em junho, visitei a maior estátua de ketchup do mundo.
Ela fica em Collinsville, Illinois, tem 50 metros de altura e é, na verdade, uma caixa d’água construída nos anos 40 para abastecer uma fábrica de, vejam vocês, ketchup.
Hoje, virou ponto turístico e o grande orgulho da população local, que faz ações para preservá-la como se se tratasse de uma estátua renascentista.
Ali, erguida sobre as casas e motéis de beira de estrada, a estátua era um verdadeiro delírio visual coletivo e, ao mesmo tempo, uma representação perfeita da cultura dos EUA. Ao transitar pelas estradas profundas do país, é bem possível que você se depare com uma vaca gigante de fibra de vidro, um cachorro-quente do tamanho de um ônibus, um elefante rosa em frente a um posto de gasolina.
Tem gente que faz roadtrip só pra visitá-las. Elas começaram a ser instaladas para atrair a atenção das pessoas que passavam de carro pela rodovia para pequenos comércios no trajeto.
Em um dos restaurantes que parei, um imenso Trump de papel marché posava ao lado de um atirador carregando um rifle. As estátuas conseguiam ser ainda mais grotescas que o ketchup, uma mistura de mal-gosto, patriotismo e marketing.
Dentro da loja, camisetas, broches e bonés da MAGA estavam expostos na vitrine. Quando uma das participantes do meu grupo chega e pede pra tirar foto com um, a velhinha de trás do balcão retira o produto, desconfiada:
— Você gosta dele? Ela pergunta à cliente.
A moça tira a foto, devolve o boné e vai embora. A atendente me chama. Alguém contou para ela que eu era brasileira e ela queria saber se eu conhecia um dançarino que ela descobriu no tiktok. Ela me mostra o celular repleto de vídeos de um grupo formado por homens musculosos de calça apertada dançando axé e pagode baiano.
— Eles são do Brasil, ela conta.
Digo a ela que nunca vi aquelas pessoas na minha vida, mas eles eram grandes na rede de dancinhas. Provavelmente influencers em uma bolha digital diferente da minha.
Antes de ir embora, pergunto:
— E você, gosta dele?, eu aponto pra vitrine com produtos Trump.
Ela faz uma careta e sacode a cabeça de um lado pro outro com veemência.
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Chicago tem os tons de um filme noir. As ruas parecem cenários e me levam a acreditar que eu poderia, a qualquer momento, trombar com o Harrison Ford fumando um cigarro em um beco.
A sensação de estar em um mundo encantado do cinema me acompanha em qualquer viagem pelos Estados Unidos. O peso da influência cultural que recebemos sempre toca num lugar afetivo: os filmes que assistimos quando crianças na sessão da tarde, personagens e locações de séries que nos acompanharam por tantos anos que se tornaram amigos imaginários, referências tão incrustadas em nossa história que chegam a ser parte de quem somos.
Nos meus primeiros dias ali, me dedico ao check list turístico: tiro uma foto distorcida no feijão, faço um tour da máfia, visito um speak easy e uma casa de jazz. Em pouco tempo, consigo me imaginar morando ali, cruzando prédios e becos na linha de superfície do metrô enquanto tomo um café superfaturado, um exercício que sempre faço nos lugares que gosto.
Chega a ser bipolar minha relação com o país da qual eu sou a mais profunda hater desde que, aos 14 anos, criei um jornalzinho “contra a ALCA e o FMI” para distribuir na Feira de Cultura da minha escola e fui repreendida pela diretora quando tentei usar uma bandeira azul-vermelha-estrelada como pano de chão.
Existe uma coisa, ali, um fascínio. Ao contrário do que acontece, por exemplo, com a Europa, os EUA me despertam a curiosidade e o interesse dos lugares que eu coloco no campo do exótico. Por baixo da camada fina e completamente plástica dos shoppings e das atrações artificiais voltadas para o consumo, tem uma cultura e uma forma de vida que eu só consigo observar de fora e achar esquisito, sem nunca entender completamente.
Pense você, por exemplo, no jeito completamente maníaco com que eles decoram as casas no Halloween e no Natal, nos concursos de quem-come-mais-qualquer-porcaria-que-você-puder-pensar, naquelas estátuas gigantes que eu falei ali em cima. E ainda, a naturalidade de ver armas à venda em lojas de conveniência, o patriotismo brega que inunda o país com bandeiras em cada esquina, a cultura do excesso travestida de abundância e paranoia. E, claro, a incoerência entre o discurso de liberdade e a seletividade sobre quando, onde e, principalmente, pra quem essa liberdade está disponível.
Minha primeira viagem para os Estados Unidos foi em 2014, tempos de Obama, dólar barato e classe média brasileira lotando outlets e parques da Disney. Na época, minhas tias combinaram de custear parte da minha viagem para acompanhá-las, me responsabilizando, em troca, pelo planejamento e pela comunicação em inglês.
Depois, voltei mais quatro vezes à trabalho, motivo pelo qual eu estava em Chicago. A viagem pela Rota 66 foi uma fam trip (um tipo de viagem de reconhecimento para profissionais do turismo e, às vezes, da imprensa) que me possibilitou, pela primeira vez, sair das capitais para o interior do país, onde tudo é ainda mais cenográfico. Aquele interior de casas de dois andares com quintais enormes, estradas planas que se estendem por quilômetros e crianças andando de bicicleta pela rua.
Quando viajo, meu objetivo não é apenas relaxar e ver coisas bonitas. Quero entender o mundo e as questões geopolíticas me interessam muito. Sendo assim, é de se imaginar que a maior potência de nossos tempos tenha muito a me mostrar. Ainda mais em seu momento mais decadente.
Aprendemos a vida inteira a ver os Estados Unidos como um líder global. Um país que nos deu blockbusters e fast food e, embalado nisso aí, a narrativa de ser o guardião supremo da liberdade. Mas ao andar pelas ruas da Florida e Chicago, no entanto, o que testemunhei foi uma nação cindida: de um lado, quem acredita que a democracia ainda pode ser salva; do outro, quem acha que ela já não vale tanto assim. O sonho americano transformado em um pesadelo político.
Eu estava em Chicago no dia do aniversário do Trump. Em uma das cidades mais progressistas do país, o clima era de protesto, e a data ficou conhecida como “No Kings Day”. Entre cartazes que davam boas-vindas a imigrantes e gritos de guerra anti-fascistas, assisti à marcha fúnebre que tentava se levantar contra o fim quase certeiro da democracia estadunidense.
Uma senhorinha de Minnesota me perguntou algo e, ao notar meu sotaque, quis saber de onde eu era. “Nos dias de hoje, eu faço questão de dizer a todos os estrangeiros que eu encontro que nós queremos vocês aqui. Seja bem vinda ao meu país, espero que todos te tratem bem”, ela disse, antes de sair. Se habitar politicamente o planeta não tem sido fácil na última década, deve ser pior ainda ser um estadunidense com o mínimo de noção nos dias de hoje.
Longe dali, em Key West, o contraste era outro. A ilha que já foi conhecida por abrigar piratas, artistas, bêbados e escritores e que serviu de refúgio para a comunidade LGBTQIA+ quando seus membros eram perseguidos no resto do país, hoje abundam camisetas que dizem “Gulf of America” tremulando ao lado de bandeiras arco-íris nas lojas de souvenir.
A guinada à direita na Florida (e no resto dos EUA) conseguiu dividir até mesmo uma ilha que já se orgulhou de ser o bastião da rebeldia e que hoje é um retrato perfeito da atual situação do país: um lugar em uma guerra ideológica entre aqueles que querem erguer e derrubar muros. E, todos os dias, essa tensão se aprofunda, aumentando o temor de que esse conflito saia do campo das ideias.
Nesse estranho cenário, também leio notícias. E sim, é verdade que o mundo ainda orbita em torno deles, mas essa posição é muitas vezes mantida na base do grito e da ameaça. Deve ser esse o maior sintoma de um declínio: a incapacidade de abrir mão de um poder que já não se sustenta sozinho.
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