A primeira coisa que eu fiz ao sair de Havana foi pedir um hambúrguer e uma IPA na cervejaria ao lado do apartamento de Bogotá. Eu já tinha estado na Colômbia três vezes antes, a última ainda esse ano, quando passei três meses entre o mar e as montanhas. Apesar disso, caminhava pelas ruas do centro atordoada, não apenas como se fosse minha primeira vez ali, mas como se nunca antes tivesse visto uma metrópole.
Depois de passar 87 dias vivendo no socialismo, as luzes, outdoors e pessoas disputando as calçadas em horário de pico pareciam uma agressão, mas muitas das dinâmicas com as quais eu fui acostumada desde que nasci estavam de volta e eram docemente familiares:
- Pedimos um Uber para o Shopping Center mais próximo para substituir um fone de ouvido do Jeff que havia queimado semanas antes. Ele gastou mais do que eu achava que era possível gastar em um fone de ouvido e eu imediatamente comecei a desprezar o meu, que até trinta minutos antes era o melhor fone que eu já tinha tido na vida (e também o mais caro), mas infelizmente ele não tem um cancelamento de ruído pró-master-5.0-plus-e-o-caralho-a-quatro. De repente, o melhor-fone-que-eu-já-tive-na-vida era feio, pesado e obsoleto, e internamente eu comecei a querer que ele queimasse também só para que eu me sentisse autorizada a gastar algumas centenas de reais em um fone novo que eu de forma alguma preciso, mas desejo.
- Fomos ao supermercado para fazer as compras da semana e voltamos pra casa com um monte de produto embalado em plástico e frutas que não deveriam estar nas prateleiras essa época do ano. Por outro lado, tinha ovos aos montes e eles custavam apenas R$0,60 a unidade (Se você não entendeu essa referência, leia esse texto aqui). E ainda pagamos tudo no cartão.
- Pedimos um Rappi no sábado à noite e o entregador roubou o sanduíche. Contactamos a empresa e eles disseram que não podiam fazer nada graças a uma cláusula obscura nos Termos de Uso que eles não explicaram qual era. Esse é um golpe comum na Colômbia, onde o Rappi reina sem concorrentes e sem Procon e, por isso, não vê motivos para implementar uma mísera medida de segurança que evite esse tipo de situação porque, afinal de contas, o lucro é rei do lado de cá do mundo.
Como está a situação de cuba hoje
Morar em Cuba foi sem dúvidas uma das experiências mais malucas, intensas, curiosas e edificantes que eu já tive na vida.
E digo morar, assim, bem mais ou menos, quase colocando entre aspas, porque nenhum estrangeiro pode realmente morar em Cuba. A menos que você tenha sua caderneta de racionamento e vá todo mês buscar frango e feijão nas bodegas do governo, será sempre um turista por lá.
Os inúmeros luxos e privilégios que conseguimos acessar no país estão fora de alcance para o cubano comum. E não por uma proibição qualquer do governo, mas por um motivo tão conhecido para nós quanto a desigualdade de renda. A mesma que também impede a maioria esmagadora da população brasileira de acessar os mesmo luxos e privilégios que eu.
Mas, além disso, há também a dinâmica: ali predomina uma lógica socialista impenetrável para quem está acostumado a ver valer a lei do mercado.
Foi na tentativa de entender essa lógica que, nos meus primeiros dias em Havana, contratei um tour privado com uma socióloga. A guia, que aqui vou chamar de Mercedes, me levou para um passeio pelas ruas do centro e me contou sobre a história e o momento atual da ilha:
“Eu amo meu país. Sou muito orgulhosa de que aqui não tem ninguém morando na rua sem que estejam olhando por ele. Nossa taxa de analfabetismo é zero e, não importa de quem você é filho, você tem todas as condições de estudar e se tornar um médico, um músico, um atleta, um artista”, disse ela.
Ela mesma, nascida na zona rural, foi enxadrista profissional e praticou ginástica olímpica na adolescência.
Apesar disso, Mercedes está insatisfeita. E ela não está sozinha. Desde a pandemia de Covid-19, Cuba passa pela mais severa crise econômica de sua história, afetando seriamente os direitos sociais e econômicos da população.
A interrupção do turismo em 2020 e 2021, segunda principal atividade econômica do país, foi um golpe duro nos cofres cubanos. Depois, políticas governamentais desastradas acabaram aprofundando a crise na tentativa de solucioná-la.
Um exemplo foi o fim do CUC (Peso Convertível Cubano), uma das duas moedas oficiais do país, que foi descontinuado em janeiro de 2021 como parte de uma reforma que agravou ainda mais a situação. Essa reforma visava unificar o sistema monetário e simplificar as transações, mas resultou em inflação descontrolada e desabastecimento, aumentando o descontentamento entre a população.
O peso chegou a perder 400% de seu valor na cotação oficial, e 835% na cotação praticada nas ruas. Como resultado, a pensão de 1700 pesos de um aposentado, que antes dava para passar o mês, agora mal dá para um quilo de frango.
Se não estão na completa miséria, é graças aos cada vez mais escassos alimentos da cesta básica subsidiada pelo governo. E, sem forças para encontrar alternativas para fazer um dinheiro extra em dólar, já dá para encontrar vários idosos pedindo nas ruas de Havana Vieja.
“Antes, tínhamos ovos pra comer todo dia. E, se acabavam, conseguíamos comprar mais. Agora, o governo envia apenas oito, quando envia, e nos agros, eles custam nosso salário”, me contou uma professora de letras da Universidade de Havana.
Não por um acaso, o país viu uma evasão de cerca de um terço da população nos últimos anos, a maior parte deles saindo do país com visto de refugio para outros países da América Latina e, em alguns casos, arriscando a vida em travessias com coiotes do México para os Estados Unidos.
“Tá vendo essa fila? Esse é o consulado da Espanha. Todos os dias, centenas de pessoas vêm até aqui tentando conseguir os documentos de cidadania por ascendência”, Mercedes me mostrou no nosso tour.
Outra consequência da crise foi o afrouxamento das regulamentações que acabou levando a uma maior abertura econômica. O empreendedorismo individual avança a olhos vistos no país, mas redes e grandes empresas ainda são proibidas.
Essa medida representou uma esperança de renda para grande parte da população. Em todas as ruas de Havana, vemos pequenas mercearias montadas no quintal de casa vendendo os produtos mais aleatórios possíveis.
Por outro lado, algumas pessoas começam a ter acesso a mais bens de consumo que outros. Para a cabeça do cubano, esse desnivelamento quer dizer que o país não é mais igualitário. “Há desigualdade aos montes” me disse o dono uma guesthouse em Viñales. “É só ver que uns tem iPhone, outros uns telefones velhos. Não é pra todo mundo”. Não soube como explicar que, para mim, desigualdade é estar em um país onde o 1% mais rico da população detém 28,3% da riqueza e outros 59% convivem com algum grau de insegurança alimentar.
Esse tipo de concentração de renda encontrado não só no Brasil mas em toda a América Latina ainda está muito longe de aparecer por lá. Um professor de história com quem conversei em um bar argumentou que Cuba foi o único país da região a romper com a estrutura colonial que ainda reproduz as desigualdades continente afora. Talvez seja por aí.
O impacto do embargo econômico em cuba
Mercedes me contou que Cuba, por ser tão pequena e cercada de mar, sempre existiu atrás de uma grande potência. Primeiro, como colônia espanhola, depois, se apoiou nos Estados Unidos e, mais tarde, na União Soviética. Com a dissolução do bloco, buscou auxílio até mesmo no Brasil, que durante os anos do Mais Médicos ajudou significativamente a manter a economia cubana de pé.
Sozinha, não importa em qual regime econômico esteja, a ilha se enfraquece. O embargo, portanto, ainda tem grande parcela de culpa na situação atual, ao isolar ainda mais um país com recursos tão escassos. Se falta ibuprofeno nas farmácias, é porque uma negociação com a Índia acabou morrendo na praia quando o banco que intermediaria a compra deu pra trás com medo de represálias.
No apagar das luzes de seu governo, Donald Trump estrangulou ainda mais a ilha ao colocá-la na lista de países financiadores do terrorismo. Uma alegação que, qualquer pessoas em sã consciência percebe, seria cômica se não fosse trágica. A medida, implementada bem no meio da crise econômica, aumentou as restrições às quais o país é submetido.
Mas é muito fácil se esquecer disso, uma vez ali. Hoje, é possível encontrar todo tipo de produto importado nas prateleiras. Comida industrializada de todas as partes do mundo é vendida a preço de ouro nas mercearias privadas. Mas o embargo atinge bem onde importa: os itens essenciais para desenvolver indústria e infraestrutura seguem encontrando dificuldades para chegar ali.
Mesmo com todos esses obstáculos, o país ainda conseguiu desenvolver uma vacina própria para Covid em tempo recorde, antes mesmo do Brasil, um feito digno de nota.
E preciso também dizer que o cubano desfruta de uma segurança pública de dar inveja a qualquer país latino-americano. Livre do tráfico de drogas, de armas e do crime organizado, nem mesmo durante os blackouts as ruas de Havana inspiram medo. Mas desconfio que a valorização e o fortalecimento dos laços comunitários ali também tenham algo a ver com isso.
Assim, pra todos que mandaram pra Cuba, digo que fui e que voltaria. O que encontrei lá passa longe de ser uma utopia, mas tampouco é um fracasso.
Cuba não é nada disso. É só mais um país latino-americano que foi colonizado, construído às custa de pessoas escravizadas, permaneceu desindustrializado, foi colonizado novamente. E poderia estar esquecida no Caribe, sendo conhecida por ser nada mais que um playground paradisíaco para estadunidenses — como tantas outras ilhas — mas que em algum momento disse não, exigiu soberania e tentou construir para si uma história diferente. Pagou e ainda paga muito caro por isso, mas resiste.
E foi assim que virou um lenda.
Hasta la victoria, Cuba querida!
Y sin perder la ternura. 🇨🇺❤️
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Obrigado por compartilhar isso. Cheio de curiosidade e informação, além de desmitificar muitas coisas. Espero que Cuba consiga sair de toda essa situação embaraçosa.
Boa semana!
O JOVEM JORNALISTA está no ar cheio de posts novos e novidades! Não deixe de conferir!
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Até mais, Emerson Garcia
Olá Emerson,
fico feliz que tenha gostado do texto. Também torço muito por Cuba! Boa sorte com seu novo projeto!
Oi, Natália.
Primeira vez aqui e adorei seu blog.
Hoje em dia é difícil encontrarmos algum tipo de conteúdo que traz esse olhar panorâmico sobre algum lugar, ainda mais quando se trata de Cuba haha adorei!
Olá Eduarda! Estou muito feliz que tenha gostado! Cuba é muito polarizador né? Todo mundo quer que a gente caia de um lado ou de outro, mas a verdade é que é um país latino cheio de qualidades e problemas como tantos outros.
Os meus parabéns e um obrigada, apenas porque sou pela consciência e verdade. Sou contra qualquer injustiça e sem dúvida que o isolamento a que votam esse país é enfim desumano, próprio de uma superpotência. Muito triste a situação que os impede de prosperar com uma ideologia independente.
Se não se importa usarei o seu texto em contraponto a descrições maniqueístas, tendenciosas e desonestas intelectualmente como é o caso de um vídeo que acabei de ver em que a única ideia é atacar a ideologia de Cuba em si, motivada por uma ignorância básica própria de pessoas limitadas.
Olá Stella! Muito obrigada pelo comentário! Sinta-se a vontade para usar meu texto!
Um grande abraço e volte sempre por aqui!