Uma quadra enorme transformada em confecção de fantasias, minha avó tomando medidas, toneladas de patê e tecido furta-cor, esparramados no chão, nas paredes, nos corpos. Eu vestida de Arlequim, num macacão de cetim rosa-chiclete, pom-poms azuis.
Minhas primeiras memórias do carnaval são de Brasília de Minas, cidade da minha mãe. Festejo sério, que movimentava a cidade todinha e despertava rivalidade e rancores entre vizinhos em torno das duas escolas de samba locais. Quase um Atlético x Cruzeiro do cerrado mineiro.
Lembro-me de caminhar a cidade com minha avó – foliã convicta até que a idade não deixasse mais – atrás de resolver pormenores da festa. E de desfilar à noite na avenida, eu pequena no meio dos abre-alas, dos carros alegóricos, das porta-bandeiras. Foi ali, aos cinco ou seis anos, que me ensinaram pela primeira vez a sambar. E, por mais que eu nunca tenha aprendido direito, foi também quando eu entendi que na multidão todo mundo dança bonito.
O carnaval de Brasília de Minas foi interrompido em 1995, por decisão da prefeitura, colocando um ponto-e-vírgula em uma tradição popular e espontânea por questões moralistas. Algumas tentativas de retomá-lo ocorreram depois, mas a festa nunca mais recuperou seu fôlego.
CARNAVAL DE RUA E DE LUTA
O carnaval só voltou à minha vida anos mais tarde. BH, que até então virava cidade-fantasma durante os quatro dias, foi na onda do renascimento dos blocos de rua e começou os seus. Tem algo de especial em ver uma tradição nascer assim, desde o comecinho, e se transformar no que é – ou no que era, antes da pandemia.
Ali, a folia nasceu política, cresceu política e continua sendo política mesmo agora que teve que ser interrompida. Os primeiros blocos, informais e improvisados, foram o jeito que a população encontrou para contestar a prefeitura, que queria proibir o uso de espaços públicos sem autorização prévia.
Hoje, é um dos maiores carnavais do país, com blocos que arrastam milhares. Mas nós, que acompanhamos tudo lá de trás, nos orgulhamos de poder dizer que o evento manteve em grande parte sua essência, promovendo um carnaval democrático e pautado na diversidade e no respeito. E o carinho que tenho por essa festa me faz ver o carnaval não como um feriado, mas como um compromisso.
Para quem participa dos ensaios dos blocos desde setembro, é contagiante ver a cidade mudar conforme vai chegando ao ponto de ebulição. Em algum momento ali, no fim de janeiro, as pessoas já não conseguem mais se segurar. É preciso colocar glitter, uma flor no cabelo, uma ombreira de fitas. Ou algo não parece certo, fica fora de lugar. Depois, confeccionar fantasias com papelão e cola quente, cruzar a cidade inteira usando pouco mais que um top e um hot pant e ver todo mundo na rua colorido, feliz. Como você.
E no resto do ano, cada pontinho brilhante que você encontra pela casa é um souvenir, uma relíquia daqueles dias em que a gente se esquece de todo o resto só para ter nosso tempo ditado pelas batidas de um surdo outra vez.
Confesso que tive esperanças esse ano, mas as prefeituras por aí decidiram que aglomerar até pode, desde que você pague por abadá e camarote em festa privada com a Anitta e não sei quem mais. Tentam a todo custo privatizá-lo. Mas sabe o que é curioso? Toda vez que você tenta tirar o carnaval das ruas, ele deixa de ser carnaval. Vira evento, show, festival. Qualquer outra coisa, menos isso. Carnaval de verdade é nas ruas, becos, praças e avenidas.
Com todo mundo ali, junto, celebrando a cidade.
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