Faz um mês que me mudei para minha nova casa, nessa nova cidade que eu ainda não sei se posso ou não chamar de lar. Dois comprovantes de endereço atrás, eu coloquei no papel uma lista com todas as casas em que eu já morei, do barracão dos fundos em uma rua no bairro Floresta, em Belo Horizonte, onde nasci, porém não guardo nenhuma lembrança, a esse apartamento que divido com um moço alemão e um cachorro em uma avenida de Berlim, minha casa de número 18.
Um dos meus objetivos do início do ano era ter um lugar que fosse realmente meu, em que eu pudesse escolher os móveis e pendurar na parede aquele poster que eu comprei no México no ano passado, mas que está até hoje enrolado em papel pardo num canto do quarto que eu ainda mantenho na casa da minha mãe, a espera de que eu encontre um lugar para ele. Quando eu acordei essa manhã e fui preparar meu café, a louça suja da cozinha e a decoração que não é minha me fizeram perceber que não são as paredes desse apartamento que vão me dar permissão para colocar o quadro ou fazer uma minha vida nessa cidade. Sou em quem tem que permitir que Berlim se torne minha.
Um dia, em uma conversa bêbada na sala da casa de uma amiga, eu disse a ela que eu queria encontrar “um motivo para ficar aqui” e ela me disse que isso não existia. “As pessoas ficam nos lugares porque elas criam vínculos, mas você só vai criar vínculos se você ficar tempo suficiente para isso”. Meu trabalho e alguns privilégios me permitiram uma grande mobilidade e a oportunidade de ver um pouco do mundo nos últimos seis, sete anos, mas chega a hora em que eu quero poder cuidar de um gato, ter mais livros do que os que cabem na mochila e cultivar relações mais duradouras com os espaços e pessoas. Para isso, preciso de um lugar do qual eu não vou me despedir nas próximas semanas.
E foi assim que eu cheguei nessa cidade nova – cuja língua oficial ainda me causa um grau leve de desespero, onde não conheço quase ninguém e não entendo o confuso sistema tributário -, procurando por algum sinal de que eu posso abrir a geladeira, pegar uma cerveja e me sentar com os pés no sofá porque, afinal de contas, eu sou de casa. De que essa é a minha casa. Mas tudo o que eu consegui até agora foi me afundar na burocracia e na guerra que é o mercado imobiliário.
Quando eu penso em como eu vim parar aqui, Berlim quase parece uma casualidade. Me deparo com um labirinto confuso cheio de acasos, decisões impulsivas e um monte de pontas soltas com as quais eu vou ter que aprender a conviver, porque é parte do processo entender que na vida nem todas as histórias têm começo, meio e fim. Comprar aquela passagem para Alemanha, em vez de Barcelona, e mudar de repente todos os planos que eu havia alimentado nos últimos dois anos foi uma decisão impulsiva, mas também representou a minha libertação das histórias que eu vivi – e das que eu achei que estava vivendo – em 2016. Foi, de certa forma, uma conclusão, mas não daquelas com finais épicos de filme. Estava mais para quando cancelam aquela série que você ama sem aviso nem desfecho, e a única coisa que você pode fazer é se resignar e procurar por outro programa favorito.
É claro que, enquanto eu esperava a companhia aérea validar os dados do meu cartão de crédito, eu não pensei em nada disso. Eu só olhava apreensiva para a tela do computador, esperando que a compra fosse aprovada e que eu não me arrependesse da decisão tomada em menos de meia hora, mas que transformaria de forma considerável o curso da minha vida nos meses seguintes (e, se eu ficar por aqui, anos). Lá no fundo, no entanto, eu sabia que grande parte do meu desejo de voltar para Barcelona era ir atrás das histórias inconclusas que eu deixei por lá quando tive que sair de repente depois que eu não consegui estender meu visto de estudante.
Mais que voltar pras ruas bonitas e praças e praias de Barcelona, o que eu queria era voltar pra aqueles dias intensos que eu vivi ali e retomar aquelas histórias do ponto em que eu as larguei: os amigos que eu fiz, mas que já não vivem por lá, a vida de estudante que já não cabe na minha rotina, a história que era para ser de amor, mas acabou se transformando em um enorme desencontro com um final estranho e sem graça, porque a vida tem dessas e nem todas as paixões são feitas para serem roterizadas no cinema, por mais que nossos corações educados a base de comédia romântica esperem o contrário.
Outro dia, assisti um vídeo que a Aline Valek indicou na newsletter dela, sobre como Bojack Horseman subverte a narrativa e, por isso, acaba se parecendo mais com a vida real que outros programas de TV. Nele, o autor do vídeo mostra o contraste entre a “vida real” do protagonista e seu papel no sitcom Horsing Around. Na ficção, cada capítulo ou ciclo narrativo caminha em direção a um desfecho, e o conflito construído no começo do episódio é encerrado ao fim de meia hora, para só então começar um novo conflito no episódio seguinte.
E porque nosso cérebro é feito para ver estrutura, conexões e significado em tudo, tendemos a acreditar que somos parte de um enredo amarradinho, que nos leva em direção a um ponto em que tudo vai fazer sentido e todas as peças vão cair no lugar, quando tudo o que temos são momentos aleatórios jogados em uma linha contínua de tempo. Ou, como disse o próprio Bojack: “Encerramento é algo inventado pelo Steven Spielberg para vender entradas no cinema. Assim como o amor verdadeiro e as Olimpíadas de Munique, não existe no mundo real. A única coisa que podemos fazer agora é seguir adiante”.
E parte de amadurecer é entender que não existe isso de aprender uma lição no fim dos dias ou de encontrar todas as respostas antes que você seja apresentado às novas perguntas. Às vezes, a gente tem que aprender a conviver com as dúvidas porque elas simplesmente não vão embora à medida que a gente fica mais velho e talvez essa seja a maior sabedoria de todas. É saber que a vida é um eterno “e se” você tivesse tomado essa ou aquela decisão, mas também que a única realidade possível é a que a gente tem hoje. O resto é pura especulação que a gente pinta com as cores mais vivas da nossa imaginação para parecer mais interessante, mas que no final é só isso mesmo: uma ideia do que poderia ter sido. E permanecer como uma ideia é a única forma de continuar perfeita.
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