Dois milhões e meio de pessoas e eu ali, um pontinho preto no terceiro telão da esquerda, ao lado do mar. Ao contrário da maior parte das pessoas ali, eu não corri para reservar hotel ao saber que Lady Gaga se apresentaria de graça em Copacabana. Minha presença no maior show de uma artista mulher na história do planeta foi quase que por acaso.
Desde que saí da faculdade, perdi muito do contato que eu tinha com a obra da diva. Já não acompanhava mais os lançamentos, embora as letras dos hits permanecessem intactos na memória. E, gente, como ela tem hit, né?
Mas calhou de eu estar passando um tempo no Rio de Janeiro bem nesse momento e, estando tão perto assim, eu jamais me perdoaria por perder O evento do ano.
Não pensei na multidão, na segurança, em como diabos eu ia fazer pra ir embora sem Uber, na lista de obstáculos que qualquer ser humano com o mínimo de sanidade pensaria antes de se deslocar para a orla. Estar ali era inquestionável.
E, por isso, eu fui.
Entre tantos desconhecidos com tanto (e tão pouco) em comum, pulando enquanto eu gritava que nasci assim mesmo, me perguntei a que linguagem responde um corpo que dança em êxtase.
Disseram por aí, na crentosfera, que nós éramos parte de um ritual coletivo de culto a satã.
Embora eu deteste admitir, há alguma verdade nisso aí.
Lady Gaga, assim como tantas outras divas que vieram antes e depois dela, há muito tempo deixou de ser apenas uma cantora pop para se tornar um arquétipo. Uma figura que deu autorização simbólica para que tantos se permitissem ser tudo aquilo que não cabia no armário da adolescência.
Em O Calibã e a Bruxa, Silvia Federici escreveu que, ao longo da história, a perseguição a mulheres e corpos dissidentes ocorreu por que elas ameaçavam o controle social com sua liberdade. Lady Gaga, uma mulher defensora desses corpos dissidentes (que ela batizou de monstros), ícone queer e transgressora, representa uma verdadeira heresia pop.

Monstros que bailam à luz da lua, à beira-mar
Além de logística (que outro lugar no mundo comportaria tanta gente?), a escolha de Copacabana para o evento foi também simbólica. A praia, esse território público por excelência, é um dos poucos locais ainda minimamente democráticos nas grandes cidades. Ali, ninguém precisa pagar ingresso, comprar ingresso, validar ingresso. É só chegar.
E Copa já é, em certa medida, o cenário de tudo que importa no Rio: do Réveillon ao clássico futevôlei e, agora de uma multidão que entoou “Shallow” abraçado com um estranho.
Uma metrópole com o privilégio da praia, o Rio tem essa maresia que afrouxa a dureza do concreto e dá lugar à criatividade e ao improviso, temperado com uma mistura de beleza e de caos. No palco, Lady Gaga. No horizonte, o Cristo com os braços abertos, observava tudo e dizia: “vai lá e arrasa!”.
E os monstros arrasaram de uma vez só.
Lady Gaga, é afinal, a mãe de todos aqueles que foram convencidos de que eram “too much”: demais para ser amado, ser respeitado, para estar em público sem se encolher. Em suas performances exageradas e dissonantes, algo dentro de toda essa gente encontrou eco.
Eu vi senhores engravatados de salto alto. Vi rostos embaçados de choro. Vi gente com glitter no corpo inteiro, com fantasias improvisadas e bandeiras LGBT penduradas como capas. Pela tela do TikTok, vi um menino se ajoelhar na areia e pedir um outro em casamento. Os comentários do vídeo diziam: “depois de uma vida inteira se escondendo, poder ser feliz em público é um alívio”.
Então sim, todos aqueles presentes no dia 03 de maio de 2025 fizeram parte de um ritual. Fizemos uma comunhão pagã pelo milagre que é sermos muitos, diferentes, e ainda assim estarmos juntos. Invocamos um outro futuro possível, onde corpos são livres e afetos são públicos. E nosso sacrifício ritualístico foi dançar até que todos os silêncios de uma vida inteira ficassem pequenos.
E deliramos juntos. Na praia. Gritando “Baby, I was born this way”.

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